PT 2 | Capítulo 21 | Coelho branco

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Opiniões formadas a respeito disso são muitas, mas a resposta é sempre a mesa: psicopata. Tudo o que não ficou claro foi a razão.

Mas como eu aprendera antes... Era cedo demais pra tirar conclusões precipitadas. Não vi o Vitor pessoalmente mais depois que saí do hospital. Nem pensei em visitá-lo. Mas sabia que poderia estar sendo uma experiência dolorosa. O professor Silvio deu aula sobre sistema prisional do Brasil junto com o professor Paulo. A professora Débora comparou o sistema do nosso país com o dos Estados Unidos, e... bom, na teoria dela, não há uma diferença tão grande. O ângulo de atrocidades só muda. Lá tem pena de morte oficialmente e assumida. O professor Silvio se propôs a trabalhar no caso dele, junto à advogada do estado, da Defensoria, gratuitamente e sem cobrar nada em troca. Estava cuidando de tudo para sua audiência e conversou com a turma sobre o que houve. Não foi um debate. Todos preferiram chorar antes de expressarem suas mágoas do Vitor. Mas convenceu maior parte dos alunos a fazer algo sobre o assunto, tendo uma opinião contrária ou não, se realmente desejavam melhorar a sociedade e não apenas completar uma redação pra vestibular. Agir segundo o que acreditavam, não somente jogando diretas e indiretas no Facebook e disseminando ódio.

Por um momento eu preferi esquecer que eu tinha um problema. Que eu fui estuprado. Porque tinha gente sofrendo muito mais que eu naquele momento. Achei que seria até melhor parar de lembrar do que houve por um tempo. Mas ainda não dava pra dormir no meu quarto. Com o relaxamento do dia a dia, resolvi raspar a cabeça. Não tinha mais paciência pra me arrumar ou ficar me olhando no espelho. Não fazia mais sentido sequer ter pele e osso pra mim. A aparência assustou um pouco, mas depois acostumou.

Estava feliz por ver o professor Silvio defender o Vitor sem esperar nada em troca. Era típico dele. Quem dera ele fosse meu pai. Numa das matérias que li, saiu um vídeo dele junto ao Vitor, e logo que chegaram diante da juíza para começar o processo, ele colocou a mão no ombro do Vitor e puxou pra perto, como se o abraçasse. Talvez tudo o que ele precisava, muito antes daquele tiroteio, era daquele abraço. Aquele abraço poderia ter mudado tudo. Podia ter partido de qualquer pessoa. Até de mim. E era tarde demais. Então o mínimo que poderia fazer era depor... tentando defendê-lo. Mas como? Eram 17 mortos. O que iam pensar de mim?

Será que ele tinha consciência do que tinha feito?

Não podia ser hipócrita. Certos dias, tinha vontade de dar um tiro na cara do Daniel, do Marcus e do Calton, queria ver a Sabrina humilhada pelo que fez comigo, fiquei com vontade de acabar com a Geléia depois de descobrir sobre seu antigo trabalho, algumas vezes quis acabar com o Pablo e sua trupe... E agredi o Rogério. Talvez eu e ele ainda não fôssemos tão diferentes assim. Carregávamos muita coisa por dentro. Não diferente da Geléia, também. E tínhamos que botar isso pra fora antes que nos matasse. A diferença é que das duas, uma: ou descontamos em nós mesmos ou descontamos em outrem. Ninguém aguenta carregar um peso que só aumenta para sempre. Sempre acontece o momento da rendição.

Minha mãe até pensou em falar algo sobre o assunto, me pedir para não ir... Mas não teve jeito. Há muito eu não a escutava, e ela tinha consciência disso. E olha só, ela nem ousou brigar comigo.

Sabíamos que o julgamento ia demorar bastante, já que mais de 10 alunos e pessoas do cotidiano do Vitor iriam depor no tribunal, incluindo eu e a Geléia. Um dia antes, todo mundo estava tentando encher o saco do professor, perguntando o que deveria falar, como o Vitor estava. Mais uma vez, ele foi até a unidade onde Vitor estava para ouvi-lo e ter certeza do que dizer diante do juiz.

E quando o grande dia chegou, no mínimo, toda a turma viva do 3º ano estava presente. Alguns com cartazes e dizeres como: "Chega de violência nas escolas!", pessoas de mãos dadas como bonecos-palito e sinais de proibição. Seus pais também estavam presentes. Geléia estava lá, com seus pais. Pareciam todos calmos, por enquanto. Outras turmas de outros anos chegaram, mas sabiam que a prioridade era dos alunos do último ano. Todos aguardavam a viatura que traria o "inimigo".

O caso do meu tio não chegou a ir para o tribunal, pelo que ouvi falar. Já dava pra transmitir um desafio do "Eu nunca..." naquele lugar. Eu nunca estive dentro de um tribunal na minha vida, e logo num tribunal do júri. Dois coelhos com uma tacada só. Mas não era momento para brincadeiras.

Isso, no entanto, não impediu outra pessoa começar o desafio. Meu celular e o de vários outros alunos tremeu. Era a notificação do aplicativo. Alguém começou o desafio. Tiraram a foto e mudaram o nome de usuário para "anônimo", logo a arrecadação iria pra todo mundo. 10 views. 24. 56. 78. Linkaram com o Facebook. As apostaram começaram a subir. Os comentários também. Mas a aposta não era se ele seria inocentado ou culpabilizado pelo que fez. Não, todos sabiam que ele ia pagar muito caro. A aposta da vez era de quanto tempo ele ia pegar a condenação. A live começou de alguém gravando do lado de fora, onde estava a concentração de alunos, mas ainda não havia descoberto de qual celular aquilo estava sendo transmitido. Será que queriam que aquilo parasse?

Pela quantidade de pessoas que passou a assistir ao mesmo tempo... Não. 341 pessoas ao vivo. 425.

A imagem estava bem firme.

O som da viatura soou. Ele estava de blusa branca, calça bege e chinelos. O rosto no chão. Sempre no chão. Os gritos, as vaias, as ameaças, os pais... Os xingamentos, "tem que morrer uma... dessas!!" gritou um homem careca, praticamente russo, para uma repórter que estava ali acompanhando tudo. Estávamos todos prontos para entrar no País das Maravilhas sem destino certo.

E lá estava o Coelho Branco pra nos fazer seguir este caminho árduo.

Não pronunciou uma palavra em toda sua caminhada. E atrás de mim, ouvi a voz dela, quase implorando para que parassem:

— Perdoa, Pai, pois eles não sabem o que fazem.

Era a Geléia.

— Oi... pronta pra...

— Não. Nem um pouco — ela respirou fundo. — Não dormi essa noite. Só fiquei conversando com os meus pais. Falei com o pessoal do Farol. Inclusive, eles estão bem ali — ela apontou para o nordeste de onde estávamos. Estavam lá, cartões na mão, abordando algumas pessoas na rua. O do cemitério, sem dúvida, estava lá. Mandou um tchau de longe. Fingi não vê-lo. — Não achei que eles viriam, mas vieram. Prestar solidariedade. Além disso, o Vitor não é o único "despedaçado" no meio disso tudo... Mas ele...

— Eu sei.

— Não está com nem um pouco de medo, nervosismo? Nada...?

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora