PT 2 | Capítulo 3 | Piloto automático

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— Hoje vai pegar fogo aqui, hein. Fogo, gelo... como vocês acham que a humanidade vai acabar?

Sentimos um disco arranhar na nossa cabeça. Lena, a garota zen da turma, já interrompeu o assunto:

— Como é? Por que a humanidade tem que acabar?

— Olhe à sua volta. Tudo caminha para o fim da humanidade.

— Não... estamos caminhando para os exames finais. Tudo o que eu vejo à minha volta são cadeiras, alunos e um professor cheio de posições negativas. — ouviu-se um chiado e percebi o rosto de Lena se encher de orgulho.

— Entendi. Tudo bem. Quem aqui assiste TWD?

A maioria da turma levantou a mão.

— Legal. Ahm... Black Mirror?

Mesma coisa aqui. Inclusive a Lena.

— Bom saber, Lena. Vamos lá... Alguém já jogou The Last Of Us?

Eu e mais alguns colegas levantamos as mãos.

— Beleza, vamos ir mais fundo no banco de dados... Resident Evil? O Livro de Eli? Eu Sou A Lenda? A Quinta Onda? Jogos Vorazes? Divergente?

— Gente, já dá pra fazer um bingo aqui, ma ma ma oe, Silviommmmm — e a turma inteira desatou a rir, inclusive o professor.

— Chama o Jassammm pra, hi, ajeitar meu cabelo... Tá, chega, gente. Vamos lá: respondam com sinceridade pro tio Silviommm... O que todos esses filmes tem em comum, na opinião de vocês?

Levantei a mão, já com medo. Não sou o mais aceito da escola, não mesmo. Senti os suspiros fundos de muita gente.

— Fala, Marcelo.

— São pós-apocalípticos. Quer dizer, a maioria deles.

— Exatamente. Então, todos os espectadores dessas histórias assumem que, no fundo, a humanidade está acabando por algum motivo fora do comum, não é?

Todos concordaram com a cabeça. Lena fez seu esforço em ouvir o professor.

— Agora, a pergunta valendo um milhão de reais... — ele fez o sotaque. — Quantos de vocês acreditaram, pelo menos por um instante, que o mundo ou a humanidade poderiam ser extintos exatamente da forma que vocês viram em uma dessas histórias?

A turma inteira levantou a mão. Eu, sem dúvida também. Doenças capazes de alterar nossa mente e nos fazer devorar uns aos outros como zumbis, guerras civis, falta de água... Quantos vídeos no Facebook e no Insta não falavam um pouquinho de cada uma dessas coisas?

— Legal, legal. Mas por que vocês acham que isso é possível?

Pablo, o que gosta de pegar no meu pé me chamando de "Branquelo" tomou sua posição na cadeira relaxadamente e soltou o verbo:

— Sei lá... o mundo já tá uma me...

— Sem palavrão na minha aula.

— Mas não é palavrão.

— Eu disse sem palavrão... Continue, em outras palavras.

— Eu acho que... — uma menina, que a escola costuma zoar de "Geléia", levantou o braço. Estava o maior calor, e ela estava de casaco preto. Ainda me lembro disso. — É porque, querendo ou não, essas histórias já mostram coisas que estão acontecendo hoje, e que se continuarem acontecendo, podem comprometer a "existência" de... disso tudo. — ela respirou e completou — e a pior parte é que alguns só se importam depois que tudo acaba. "Depois do apocalipse".

— Ih, é melhor correr pra perder esse teu cab...

— Fora, Pablo. — o professor abriu a porta e não esperou ele sequer terminar sua sentença.

— O senhor tá de implicância comigo hoje, né possível... Tô com cara de otário.

— Está, e vai ficar com cara de suspenso em 20 segundos se não sair da minha sala.

Não deu pro Pablo completar o show de ofensas, mas a tarefa foi, de fato, olhar pro fim. Era se convencer de que, literalmente, tudo nessa vida tem um fim. As nossas dores, as reclamações, a corrupção, tudo tinha data de validade. Só de ouvir isso, vi um sorriso nos lábios da Geléia. Por que?

Então, vem as teorias: aproveite enquanto pode, faça o que puder pra não acabar tão cedo, não precisa acabar de forma trágica, e daí em diante. O mundo, no entanto, parece que deve acabar mais cedo pra algumas pessoas graças à outras pessoas como Pablo e companhia. E por que não?

Ela estava de maria chiquinha baixa, de cabelo branco quase cinza, e sem cara de velha. Sempre gostou desse penteado. Confesso que também a achava estranha. E muitos eram os boatos de que ela vivia marcada. Usava três, quatro roupas para não chamar atenção de nenhum rapaz da escola. Funcionava por um lado, mas por outro era como se entregar aos tubarões. Ela era a inocente, e ao mesmo tempo parecia a culpada, com tantos dedos e olhos que apontavam para ela. Ela chamava atenção por ser ela mesma. Não tinha filtro que mudasse isso. E se ela era triste, assumia isso diante de todos. A verdade incomoda.

Mas, de fato, algo me dava arrepios nela. Talvez pelo que eu ouvisse. Sim, eu era um baita de um influenciado.

E foi dando alguns passos para trás na seção de cadernos que eu esbarrei com aquele pedaço de gente encasacado: 

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora