PT 4 | Capítulo 14 | O maior vilão sou eu

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— Então, Geléia... — estava pedindo a Deus pro cara não desligar ou pensar que era um engano. — Cê tá parecendo um pouco tensa.

— Só estou vendo a hora do pessoal da boate vir atrás de mim. Não consegui convencer o Márcio e o Gilson. Eles sabem que eu raramente saio de lá.

— Aqueles seguranças? — bloqueei a tela do celular e deixei ele em cima da mesa. 0:09.

Mesmo que caísse na caixa postal, ele poderia ouvir. Então parei de me preocupar e motivei ela a desabafar.

— É. — ela suspirou. — Mas a pior parte não é com eles. É a minha mãe. Ela vai falar um monte. Por causa do meu cabelo.

— E você... pretende voltar pra casa? De vez?

— Bom... eu acho que sim, se consegui dormir lá essa noite. Não sei dizer. Não sei como vai voltar a ser minha convivência com eles. É mais fácil pra mim ver um garotinho de 3 anos me xingando com os palavrões que aprendeu com a vovó do que ver os meus pais... sabe...

Soltei uma risadinha e ela também. Mas depois, vi seu rosto se fechar num súbito.

— Então... não acha melhor conversar com eles antes?

— O que vamos conversar, Celo?

— Bom, em primeiro lugar... O que você tem pensado deles nos últimos anos. Porquê você fez o que fez. Saiu de casa. E embarcou num caminho ruim. Eu acho que eles precisam ouvir seu lado. Ouvir o que você quer. Pelo menos o básico.

— Eu não quero uma casa, Marcelo. Não quero companhia. Não quero comida ou cama. Eu só quero as desculpas sinceras deles. E isso eu nunca ouvi. Um dia sequer. — sua voz começou a ficar trêmula. Ela respirou fundo, e as lágrimas escaparam. Toquei na tela do celular e ela percebeu. — O que foi?

— Nada não. Só ver a hora mesmo. Na verdade, não tô afim de assistir essas primeiras aulas da manhã. — 2:19. — Então... você quer que eles peçam desculpas?

— Queria. Muito. Queria ouvir um "desculpa, filha, por termos deixado um estranho subir na sua cama e em cima de você até seus 14 anos. Desculpa, filha, por não termos percebido o quanto ou por quanto tempo você esteve em perigo nas mãos de quem dizia ser nosso amigo. Desculpa por termos sido tão ignorantes com a sua dor. Por não termos te dado o abraço que você precisava, porque achávamos que você estava chateada com a gente. Desculpa, sim? Por não termos percebido o quanto você ficou distante da gente. Desculpa por não termos te trazido pra perto. Desculpa por termos deixado você fazer o que quisesse e não termos feito questão de perguntar o que você estava fazendo da vida. Desculpa por te chamarmos de 'maluca' e 'anormal' depois de termos visto seu braço machucado mas nunca termos perguntado porquê."

Então eles sabiam.

— Desculpa, filha... Por termos te abandonado. Por termos dado as costas pra você. Por ver algo errado do lado de fora, mas não do lado de dentro.

Então ela abaixou a cabeça. Soluçou, respirou fundo, fizemos silêncio. Percebi que ela não queria mais falar. Aproveitei a oportunidade para ver se ainda estavam escutando. Estavam. 7:36. Daí ela conseguiu parar um pouco. Limpou as lágrimas. E percebeu minha mão mexendo no celular de novo.

— Estamos atrasados?

— Não, não. Vamos comer primeiro. Não se preocupa com a hora.

Salgado frio ou não, a situação se tranquilizou. Desliguei o telefone. Guardei no bolso e, antes disso, coloquei ele no silencioso. Ela não podia saber o que eu fiz. Apesar de que... Por uns cinco minutos direto, ele ficou vibrando no meu bolso. Ainda bem que ela não podia ouvir. Comemos devagar, vendo o pessoal chegar atrasado lá fora. E lá permanecemos em silêncio. Quando vimos o horário do segundo tempo de aula chegando, saímos do restaurante e entramos na escola. Uma série de olhares, mas não estávamos nem aí. Cada um foi pro seu lado, basicamente.

E ainda bem que tudo fluiu bem, aparentemente. Acho que a conversa fez bem pra Geléia, porque cruzando nos corredores uma hora ou outra, ela não parecia ter marcas recentes. E os que cruzavam com ela percebiam algo diferente. Não só o cabelo. Acho que até gostaram dele. Iluminou e mostrou seu rosto. Ela era bonita. Mas ela era bem mais do que só aquilo. Algo estava diferente no semblante. Talvez uma determinação em mudar. As pessoas prestaram atenção nela. Nela. Não nos braços. Mas uma coisa bem mais incomum aconteceu na parte da tarde, quando estávamos indo pra aula de Educação Física.

Um rosto estranho apareceu na escola. A Geléia acabou esquecendo o uniforme de Educação Física em casa, mas mesmo assim me esperou trocar de roupa. Eu percebi o rosto novo, mas ela não. Fomos almoçar fora. E quando voltamos pra aula, esperei o professor Renan dar aquela bronca básica na Geléia. Depois, ele elogiou o corte de cabelo novo. E aí, ela decidiu ir pra biblioteca.

Mas uma coisa bem sinistra também aconteceu no aplicativo. O vídeo... da GoPro... até foi lançado, e arrecadou uma grana básica. Mas ele teve que ser removido. E adivinha quem apareceu na aula meio doido das ideias? Os moleques que foram comigo. Morrendo de dor cabeça, e o Matheus veio me abraçar, perguntando onde eu fui parar e porque abandonei geral.

— Não tava me sentindo muito legal.

— Olha... ninguém deixou de ser virjão, e eu já não era, mas a gente... — ele se apoiou em mim, quase caindo — tomou todas. Oxi. É muito ruim ficar de ressaca. Mas sabe o que é pior?

— Não. O que? — peguei uma bola de vôlei de uma sacola gigante.

— É... a polícia na sua cola.

— O QUÊ? — larguei a bola, espantado. — Eles descobriram as identidades falsas?

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora