PT 4 | Capítulo 25 | Paraíso

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Fiquei pensando nos meus últimos dias. Não me incomodava o fato de ter que ficar acordado uma noite inteira. Eu já não dormia direito há tempos. Também não me incomodava o fato de estar no meio de um monte de gente estranha. Parecia mais seguro do que estar em casa. Na companhia de pessoas que eu pensava que eu conhecia. Mas me incomodava, sim, o fato de ainda estar sentindo um peso dentro de mim me movendo pra qualquer lugar longe dali. Por qual motivo, eu não faço ideia. Mas os pensamentos de sumir estavam voltando. As lembranças daquela noite.

— Não sei se é uma boa ideia. Nunca fui de vir em lugar assim. Não tem ninguém que eu conheça.

— Posso te perguntar uma coisa? — fiquei em silêncio. Os olhos dele um pouco longe de mim, mas sem parar de focar no meu semblante. — Como está sua vida?

De novo? Era a situação que eu estava esperando pra me abrir?

Quando tiver oportunidade e encontrar alguém de confiança, converse

Vá a algum lugar seguro, pelo menos, e coloque pra fora o que está dentro de você

O conselho do 99 estava invadindo minha cabeça.

Fiquei em silêncio, mas senti meus olhos se encherem de lágrimas. Segurei o máximo que pude. Não havia nenhum sinal de que ele podia, de fato, ouvir tudo o que eu tinha pra dizer, a não ser pelo fato de que ele estava me dando comida e atenção. Por um momento, pensei que fosse uma moeda de troca.

— Rapaz, eu fico me perguntando quantas coisas você não deve já ter tentado fazer pra conseguir um pouco de paz, dá pra ver nos seus olhos... — ele colocou a mão no meu ombro. — Por que você não tenta algo que dá certo?

— A essa hora da noite?

Consegui reparar no relógio dele. 22h25.

— Tem algum lugar melhor pra ir ou coisa mais importante pra fazer?

Pior que não. E ele tinha razão.

— Nunca é tarde pra pedir ajuda. Qualquer hora é hora pra fazer isso. Tem várias pessoas lá dentro à disposição pra te escutar.

— É mais complexo do que qualquer um aqui possa entender — passei a mão nos olhos, tentando conter as lágrimas, fingindo cansaço.

— Deixa eu te contar uma coisa... — ele se sentou do meu lado na maca. — Sabe por quê você tentou "fazer" tanta coisa do lado de fora pra resolver os problemas do lado de dentro e não conseguiu até agora?

Acenei um não.

— Por que você é muito mais do que os seus olhos físicos conseguem ver. A solução não está de fora pra dentro. Está de dentro pra fora. Você é muito mais do que um simples pedaço de matéria ou carne. Ou nunca parou pra se perguntar por qual motivo os seus sentimentos e pensamentos têm tido muito mais influência sobre a sua vida real do que o seu "piloto automático" de tarefas?

Isso, de alguma forma, fez sentido pra mim. Nenhuma distração me livrava da ideia de que havia algo faltando em mim. Algo que nada no mundo conseguia preencher. Algo que... eu sentia que ninguém ia entender. Que não era visível, e existia com uma força escancarante. Inexplicável.

Eu não tinha um lugar melhor pra ir. A formatura já devia ter acabado. E eu acredito que a Geléia ia gostar de saber que eu estava, pelo menos, em um lugar onde eu não ia tentar me machucar e não ia estar sozinho, no mínimo. O Lucas me levou até o lugar iluminado, que parecia um salão gigantesco de dois andares e muita gente chegando. Perto da frente de um lugar que parecia um grande palco, ele me deixou sentado do lado de gente com garrafas de café me atravessando o tempo todo. Elas não paravam de sorrir. Eu analisava o lugar sem imaginar o que estava pra acontecer, em qual ordem, a qual momento.

Em frente ao "palco", vários pares de cadeiras, viradas umas pra outras com pessoas sentadas em todas, se espalhavam ao redor. Gente chorando em frente a pessoas de preto. Gente sendo abraçada pelas pessoas de preto. Gente como eu. Gente até mais nova. Alguns com faixas no braço, igual no dia em que eu encontrei a Geléia naquela boate. Gente de roupa fina e aparentemente "normal" com o rosto vermelho de tanto choro. Gente de todo tipo. Sofrendo. Falando. Se aliviando.

Eu me prendi muito pra não ir lá. Logo num lugar desconhecido daqueles. Como fazer aquilo na frente de todo mundo? Relutei muito em ir. Até demais. E percebi que era tarde para ir quando um outro cara veio até o centro do lugar alto (falaram que o nome era "altar"), pegou um microfone, nos deu um "boa noite", e como se não tivesse nenhum rodeio, soltou um:

— Eu gostaria que todos vocês fechassem os olhos por alguns momentos, não abrissem, e você que está com um grande desejo de morrer viesse aqui na frente.

Um silêncio perturbador preencheu aquele lugar. Eu não conseguia enxergar nada, meus pés tremiam, insistindo pra eu ir adiante. Mas por incrível que pareça, eu comecei a ouvir passos. Muitos passos.

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora