PT 3 | Capítulo 4 | Porto seguro

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Ele parecia ofegante.

— Claro, tá na mão — peguei o apontador e coloquei em sua mão.

Continuei prestando atenção na aula. Entrei numa discussão com mais outros dois alunos sobre a questão da Prússia. Não senti falta do apontador, até começar a sentir um cheiro estranho perto de mim. Cheiro de... sangue.

O sinal tocou novamente, e Vitor me agradeceu pelo apontador. Deu ele na minha mão e saiu disparado pelo corredor. Só deu tempo de olhar para ele, enquanto os alunos saíam, para perceber uma coisa: a cor da lâmina estava avermelhada.

Aproximei o apontador do meu nariz. Era sangue mesmo. Meu coração acelerou. Pensei em contar pra alguém. Contar pro professor. O que ele tinha feito, afinal?

Guardei o apontador no bolso, peguei minhas coisas ainda com a mochila aberta. Geléia me deu um sinal, dizendo que ia comer e me chamando.

— Eu te alcanço. Preciso... falar com um cara.

— Tá bom. Te espero na fila do RE?

— Tá. Guarda meu lugar, por favor — ela levantou a sobrancelha, mas se foi.

Tentei encontrar o Vitor nos sete andares da escola, mas não consegui em lugar nenhum. Salas, banheiros... Nada. Desci, cansado, até a fila do Restaurante Estudantil, o apontador guardado no bolso, ainda sujo. Geléia não quis perguntar a minha estranheza. Talvez seja profissional em não querer fazer as pessoas se sentirem constrangidas ou pressionadas a falarem sobre algo. As pessoas certas.

14h. Todos descansados e uniformizados. Alguns poucos alunos ausentes. Rogério não estava. Geléia era a diferente nos braços. Ainda de casaco laranja, mas padronizada. Nisso, não dava pra reclamar. Todo mundo estava largado pelas arquibancadas, até que o professor novo entrasse.

— Boa tarde, pessoal, tudo bem? Meu nome é Renan, e eu sou o novo professor de Saúde e Educação Física de vocês. Prazer — ficamos em silêncio por alguns minutos.

Ele não falou muito sobre si mesmo, mas despertou o interesse das meninas. Vitor chegou atrasado na aula. Coçando os dedos. Fiquei com vontade de ir até ele, mas o professor estava explicando a programação do ano, então não dava pra sequer me mexer sem chamar atenção. Ele respirava fundo o tempo todo. Até que eu acordei do meu transe com a palavra:

— ...vôlei. E hoje, mas só hoje, vamos treinar separados. Meninos com meninos, meninas com meninas. A partir de aula que vem, vamos misturar.

Uma salva de reclamações começou. O peso de um é diferente do outro. A força muscular, piorou. Mas ele queria porque queria que estivéssemos preparados pra qualquer tipo de adversário. Desde o inofensivo até o que massacrava.

Estava pronto pra dar meu sorriso, por seu meu esporte favorito, até ouvir da Geléia:

— Odeio vôlei. Só gosto de fazer saque. Não me dou bem no resto, mesmo... — ela coçou um dos braços e senti seu nervosismo de perto.

— A gente treina junto.

— Você ouviu o que ele disse? Vamos ter que participar das Olimpíadas esse ano — ela olhou pra cima e suspirou. — Ano de vestibular...

Quando levantamos para formar as equipes ao redor do estádio, senti Geléia tremendo de longe. Incomodada, impaciente, como se tivesse feito algo errado. Como se estivesse prestes a ser descoberta. Enquanto os outros aqueciam, minha equipe masculina fez passes. A equipe dela também estava praticando. Ela começou sacando, mas deixava as outras receberem a bola. O professor não gostou, e deu um empurrãozinho para fazê-la entrar no jogo. Mudou ela de posição.

Ela me olhava a cada 2 segundos. Vitor ficou parado em uma parede.

Ele apitou para o nosso time. Pausa pra descansar. Era a oportunidade. Não me liguei em pegar o apontador, apenas fui caminhando devagar até Vitor, que já desviava o olhar do meu.

Em questão de segundos, antes que eu falasse alguma coisa, um grito no estádio.

Apito.

Era ela.

— Ai! — ela colocava a mão nos braços.

— O que houve? — o professor correu até ela, que encostou em uma menina.

— Ela fez manchete — a menina que a segurou disse. — A bola bateu forte no braço dela. Manchete machuca.

— É, machuca um pouco — ele pegou ela pelo braço, que gemeu um pouco. — O que você tá fazendo de casaco na minha aula?

Ela fez silêncio, e as meninas começaram a se formar ao redor dela. Consegui ver a cena um pouco do alto.

— Dobra essas mangas, e recebe a bola no alto. O pano da roupa atrapalha — ele disse, já puxando a manga dela pra cima, enquanto ela puxava pra braço.

O professor ficou nervoso.

— Não dá. Desculpa.

Ele a pegou pelo braço.

— Como assim, "não dá"?

Não estava exatamente machucando ela, mas sem dúvida estava incomodando. Sua pele morena ficou vermelha.

Não é incomum um professor pensar que, por exemplo, furos estivessem no braço dela. O professor tiozão sempre relatou alunos dopados em seus anos no magistério. Drogas estavam ficando cada vez mais comuns nas escolas. Talvez ele pensasse que ela usasse... heroína, não sei.

Talvez eu sentisse o medo que ela sentia, naquele momento. De ser exposta.

Ela já estava chorando, quando ele realmente fez isso. Levantou as mangas de seu casaco, e seu olhar foi o mais inexprimível possível. Ninguém conseguiu traduzir o que o professor sentiu.

Mas era possível traduzir todos os comentários da aula. "Que isso, gente", "ela ainda faz isso?", "coisa de retardado mesmo", "caraca", "que isso, Freddy Krueger? Edward Mãos De Tesoura?"...

Não consegui me mexer muito. Quando olhei pra trás, Vitor tinha ido embora. Os comentários não paravam. O professor ainda não sabia o que fazer. Ele tomou um susto, pois Geléia levantou a mão para bater nele, mas desistiu. A garotinha forte de hoje de manhã se desmontou.

Seus braços estavam ardidos da bola, mas essa não era a pior visão. Mais da metade de seu braço estava cortada. Alguns eram alinhados perfeitamente. Outros, aleatoriamente. Visão perturbadora até pra mim.

De ouvir, conheço aquela menina desde o meu 7º ano. E soube, por alto, que aquela mesma menina tinha arrancado uma parte da sua pele na frente dos amigos e, quando saiu sangue, ela o sugou na frente de todos. O que aquilo significava ninguém conseguiu decifrar. E o que parecia um grito de sua alma virou motivo de fofoca e chacota pelo resto do ano. Daí por diante, a garota desenvolveu, e o tamanho de suas mangas também. Passou a usar sempre o mesmo penteado, e o look dos braços também era igual.

As histórias se multiplicaram. E acredito que, a partir daquele dia, provavelmente aumentariam numa progressão geométrica.

Seria injusto deixá-la ali sozinha. Mas o que eu percebi é que, talvez, ela precisasse de mim mais do que eu precisava dela. Pelo menos naquele instante. Ela não tinha porto seguro, apenas um professor atônito e uma turma de 60 alunos eufórica, muito mais do que uma fila de comentários numa notícia no Facebook do Estadão.

Ela correu para fora do estádio. Fui atrás dela, o calor intenso lá fora. Ela não parou até ouvir os gritos do professor atrás dela.

— Espera!

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora