— É, é... o atirador da nossa escola.
— Isso não importa agora — ela levantou as sobrancelhas, em sinal de susto. — Por que a gente não sai pra comer algo, se distrair...
— Não, eu não quero comer, não quero... Não quero fazer nada. Absolutamente nada. Não tenho mais ânimo pra nada. Eu só quero saber quem foi o atirador...
— Então eu vim aqui pra você me perguntar uma coisa que poderia ter perguntado ao Dr. Google?
Fizemos silêncio. Não tinha pensado nisso em nenhum momento. Corri para dentro de casa para alcançar o celular. Ouvi seus passos atrás de mim, tentando alcançar meu braço enquanto digitava.
Mas o choque estava diante de mim.
— Vitor. Foi o Vitor...
— É, foi...
Respirei fundo e fechei os olhos. Ainda estava digerindo aquilo. Geléia levantou algo pontudo pra cima.
— O que estava fazendo? — e mostrou a faca pra mim.
— ...tentando aliviar a cabeça.
— Se cortando?
Por um momento, percebi que poderia estar seguindo os passos do Vitor. A automutilação, os avisos, e... o ataque. Estava tudo tomando conta de mim.
— Eu não sou diferente dele. Acho que é meu destino... eu descontei a minha raiva num inocente, e... em outro homem na rua. E eu...
— Destino? Não existe essa coisa de destino, você escolhe o caminho que traça!
— EU NÃO ESCOLHI SER...
Ela parou na minha frente, engolindo em seco e sem compreender. Eu não conseguia botar pra fora.
Minha voz já não era a mesma.
— Eu não escolhi sofrer isso tudo. Não escolhi... — entre soluços e fungados, tentava desabafar, mas a voz continuava soando tão não minha quanto qualquer outra — que as pessoas me sufocassem desse jeito. Não escolhi ser abusado desde criança, e sem saber! Não escolhi conviver com esses monstros, e eles nem existiam dentro de mim até eu passar por isso tudo. Eu não escolhi essa dor, não escolhi essas pessoas pra infernizarem minha vida, não escolhi uma mãe horrível que não é capaz de depender o próprio filho!
Eu pensei que estava desabafando alguma coisa, mas... não. As palavras saíam enroladas, e ela me olhava com espanto. Eu não conseguia falar da forma que eu pensava. Estava saindo embolado. Eu estava gritando na minha mente pra ela, mas ela não ia conseguir ouvir tudo. E mesmo assim, estava ali, tentando. E eu pensei que ela estava ouvindo tudo, mas nem eu estava me ouvindo. Tudo o que eu sei é que não dava pra entender nem metade das coisas que eu realmente botei pra fora. Mas a minha raiva subiu tanto que eu...
— E QUEM É VOCÊ... — avancei até ela, me tornando ainda maior do que ela já me enxergava — PRA DIZER ALGO DA MINHA VIDA? PRA DIZER SE EU DEVO OU NÃO ME CORTAR?
Ela respirava ofegante, mas em nenhum momento chorou ou demonstrou medo. Curioso, pois a Geléia de meses atrás morria de medo de mostrar os braços, faltou uma semana na escola depois do professor fazer ela correr de braços à paisana e, depois disso, muitos passaram a evitá-la. Ela me olhava nos olhos sem o menor medo. A faca estava na sua mão como se fosse qualquer outro objeto. Em nenhum momento encostou em sua pele.
— Eu também não escolhi ser abusada, Marcelo. Nem sofrer bullying. Não escolhi ver os meus agressores sumirem e andarem livres e de cara limpa. Não escolhi ver meus pais se calarem. Eu não sou diferente de você também.
Ela largou a faca na cama. Meus ombros e toda a musculatura relaxaram num segundo.
— E eu sinto muito por todos esses segredos que você tem carregado. Mesmo que você não consiga botar tudo pra fora agora. Eu sei o quanto dói. Que não dá pra contar pra qualquer um. Eu achava que meu destino era virar garota de programa, e fui trabalhar naquela boate. Me sentia suja, como se não merecesse sequer ter um relacionamento sério. Me vestia daquele jeito pra ver se amenizava a crueldade desse "destino", fiz o que fiz pra... Eu sei que já te contei isso, você viveu isso comigo, só que... Eu vi que aquilo não era pra mim. E a automutilação não me ajudou em nada. E da mesma forma que eu descobri isso, eu quero que você saiba... — ela caminhou até mim com um olhar de compaixão que eu nunca recebi de ninguém — que você não está sozinho.
Nenhuma lágrima saía dos olhos dela ainda. De onde vinha essa força? Ela me abraçou pela cintura, mesmo não alcançando meus ombros ainda. Me dei por vencido, fungando e soluçando em cima dela, e ela mal se incomodava.
Você não está sozinho. O cara do cemitério, o slogan do pessoal do Farol no chat, a tia Katia... e agora ela. Ela, que há meses atrás, ia se jogar da Rio-Niterói. Aquele abraço me transmitiu uma paz que eu jamais havia sentido antes. Era curioso como essa mudança não foi algo dito, mas... real.
— Como você consegue...
— Não dói mais. — ela sussurrou no abraço. — Ainda não estou nos 100%, isso eu te garanto. Mas estou caminhando pra isso. Desculpe ter te ameaçado mais cedo, é o costume.
Nos olhamos e começamos a rir. Ela enxugou minhas lágrimas e, por um momento, aqueles pensamentos sumiram. A dor passou um pouco.
— Foi um mal necessário. Se você não me tirasse de cima dele, provavelmente a situação ia piorar. Salvou o dia, Geléia.
Não conversamos muito depois disso. Saímos apenas pra comer uma pizza, mas o clima de tensão ainda estava um pouco alto pra mim. Ela me trouxe em casa, de novo, como tem feito nos últimos dias. E, antes de se despedir, jogou uma frase no ar:
— O segredo pra não doer mais é que eu já morri há um tempinho.
Soltei uma risada de leve e completei:
— Então eu tô falando com um espírito?
Ela sorriu de volta, olhou pra baixo e respondeu:
— É. Quase isso mesmo.
Entrei em casa pensando nessas palavras.
Como assim, ela "morreu há um tempinho"?
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Rascunhos
Teen FictionUm reencontro de velhos amigos, uma noite, um suicídio e uma pergunta: por que ele fez isso? E por que o que ele fez está mexendo comigo? Marcelo precisa lutar contra os pensamentos autodestrutivos não apenas seus, mas os de muita gente ao redor.