PT 1 | Capítulo 21 | Coelho branco

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Uma pílula te faz crescer e outra pílula te faz encolher.

Parecia ter ficado esquecido, mas não. Geléia me avisou que o caso do Vitor ainda estava aberto, e que ele iria a júri popular (mais tarde, descobri que era "tribunal do júri") a qualquer momento. E, obviamente, o qualquer momento chegou. Já se passaram mais de 40 dias do tiroteio, e a escola parecia carregar um buraco enorme consigo. 19 alunos perdidos, contando com a Lena e o Pablo, em menos de um ano. E sim, das formas mais trágicas. Todos das turmas do 3º ano estavam recebendo atendimento e acompanhamento pessoal em algum lugar ou com alguém. Eu tentei falar, mas estava engasgado. O quê, eu não sei ao certo. Nada saía quando me perguntavam.

O resto da escola estava com medo, e alguns pais, por segurança ou medo, passaram a tirar seus filhos da escola. A mesma também estava sendo alvo de processos. Um carro da PM passou a fazer uma parada de, no mínimo, quatro horas em frente à escola, que de vez em quando era alvo de pichações e vandalismo, quando não de coisa pior (tipo a imprensa entrevistando os alunos ou, pelo menos, tentando). Em nenhum momento ela levantou uma arma pra cabeça dos alunos e tentou tirar suas vidas. Não a escola física. Era muito injusto. Cada vez menos alunos apareciam na hora do recreio. E durante as aulas. E na troca de professores. E na hora da saída. Nenhum desafio do "Eu nunca..." rolou nesses dias. Paramos de arrecadar pra formatura. Nem sabíamos se estávamos prontos para avançar, e por esse motivo, a diretora enviou uma carta aberta ao Ministério da Educação, pedindo o cancelamento das inscrições dos alunos da nossa escola no vestibular do ENEM e, se possível, a devolução do dinheiro dos que pagaram pela inscrição, comprovados os momentos traumáticos que passamos bem próximos às provas.

Pela primeira vez, todo mundo sentiu na pele o que é se sentir estranho para o mundo, viver sendo questionado e não saber exatamente o que responder.

Mas os alunos do 3º ano foram convocados a depor. E como nem todos estavam dispostos a colaborar com a investigação, demorou muito para marcar o julgamento. Geléia foi chamada como testemunha para o júri, mas o pânico bateu na hora. Talvez porque ela soubesse de algo fora do comum. Conviveu mais com o Vitor do que qualquer um na escola e, por muito tempo, teve o mesmo problema que ele, de alguma forma. Mas a parte inacreditável é que eu também fui.

Vitor também não estava pronto para passar pela prova de fogo. Todos estavam muito ansiosos pra vê-lo pagar pelo que ele fez. Na sua primeira apresentação à juíza, logo que foi preso, ele precisou apenas assumir a autoria do crime e ouvir o procedimento e as possibilidades. Que ele ia ter uma advogada do estado por não poder pagar e tal e tal e tal... Os tios resolveram não envolver dinheiro. Estavam envergonhados e assediados demais para tentarem investir num monstro. Sim, eles chegaram a comentar para um jornal: "não imaginávamos estar criando um monstro embaixo do nosso teto".

O mais curioso disso tudo é que Vitor parece ter se tornado um coelho branco que levava a um mundo novo que o nosso mundo, o real, desconhecia ou nunca tinha desenvolvido o interesse que desenvolvera agora em conhecer. A cada dia, se descobriam mais e mais coisas sobre ele. Quanto mais seguido, mais conhecido, mais desejado. Ninguém sabia antes que ele era um garoto órfão de pai e mãe, que a mãe morrera há pouco tempo (nas férias, antes de voltar para as aulas) e, por isso, ele morava com os tios. Ninguém sabia que, aos 12 anos, ele recebera acompanhamento psicológico por ter sido diagnosticado com depressão. Olha só, descobriram que ele já tinha feito 18 anos quando cometeu o crime, o que seria um agravante e a lei da maioridade penal não ia poder defendê-lo de uma pena mais severa. E que ele já tinha a arma do crime há um tempo em sua casa. Uma semi-automática. Nunca descarregada de uma vez, além daquele dia. Em um momento, ele não era nada, e no outro parecia um criminoso investigado nacional e internacionalmente. Sua relevância no cenário mundial e as questões que seu ato de "atrocidade fatal" levantou foi uma bomba. E alguém que nunca fora muito notório em sua comunidade local veio se tornar uma celebridade.

Será que era a intenção desde o início?

RascunhosOnde histórias criam vida. Descubra agora