23 | NÃO LIGUE O FODA-SE

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     NÃO LIGUE O FODA-SE
ADAM

3 MESES ANTES
ELA ME DEIXA MALUCO
FINAL DO OUTONO EM BAYFIELD

A porra do reflexo assombroso no espelho é a mesma dos últimos dias. Mal me reconhecia. Não que soubesse quem era, mas a grossa barbas despontada, cabelos desgrenhados, olheiras e pele pálida em nada ajudavam a compor algo tolerável.

Bufo.

Nada tolerável para quem voltaria a trabalhar dentro de menos de uma hora. O desastre continuava na minha mão direita, inchada, dentro de uma tala, onde os dedos não serviam para serviços de precisão. Isso incluía conseguir usar a habitual pequena tesoura para aparar a barba.

Todas as minhas articulações rígidas gritavam de desconforto produzindo uma dor tolerável que não tornava possível a simples e rotineira tarefa.

— Merda — rosno frustrado.

Entrego o objeto afiado para a mão esquerda, que não se saí nem próximo de qualquer coisa. Parecia um membro retardado que nunca tinha usado a merda de uma tesoura. Dentro da cuba branca encaro os poucos fiapos de fio preto espalhados.

Poderia deixar como estava, não me importava. Porém alguém me perturbaria pela minha aparência. E seria obrigado a deixar outra pessoa a fazer aquela tarefa intima enquanto tagarelava no meu ouvido.

— Droga — bato a tesoura no porcelanato.

Bufo. De soslaio encaro o reflexo frustrado e exausto. Meu corpo não tinha se recuperado por completo, minha mente estava sã o suficiente para não suportar nem mais um minuto preso em casa.

Precisava trabalhar. Precisava voltar a correr. Precisava sair para beber. E precisava pensar. Pensar sobre ela [...]

— Está tudo bem aqui? — ela se materializa na porta do meu banheiro.

Dentro de um jeans apertado, botas no pé, camisa larga dentro de uma jaqueta marrom. Quase rio incrédulo com aquela aparição. Era estranho. Pela primeira vez era estranho encarar uma garota depois de transar com ela. Talvez porque mal tínhamos falado na manhã seguinte. Pela primeira vez uma garota me largou na cama.

Pela primeira vez quase me senti usado por uma garota que saiu apressada dizendo que tinha um compromisso, batendo a porta e me deixando confuso. Aquela pirralha estava fodendo com a minha cabeça insana.

E agora, três dias depois. Lá estava ela, invadindo meu apartamento, parada na porta do meu banheiro, com os malditos olhos cor de mel curiosos analisando tudo com um meio sorriso nos lábios.

Aqueles doces lábios.

— Como você entrou? — disparo desconfortável.

Fujo dos seus olhos e ignoro seu pequeno corpo apoiado no batente, preferindo esfregar espuma de barbear nas partes que conseguia passar a lâmina com dignidade.

— A porta estava aberta — seu tom é duvidoso — Vejo que está voltando ao normal.

Sua observação final é ambígua.

Estreito os olhos para o espelho, não resistindo a maldita tentação de buscar o reflexo da jovem quase ao meu lado. Engulo minha grosseria. Não era ela. Talvez fosse. Mas era a maldita barba e outras incapacidades.

Odiava depender de alguém. Deslizo a lâmina de barbear sumindo com a espuma branca que cobria meu pescoço. A sensação dos seus olhos não era a melhor para a minha precária atenção.

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