20 | NÃO ME DEIXE DESABAR

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20
     NÃO ME DEIXE DESABAR
ADAM

3 MESES ANTES
O DIA QUE ELA ME SEGUROU
FINAL DO OUTONO EM BAYFIELD

I ain't seen the Sunshine since I don't kown when

O velho disco do Johnny Cash roda e roda sob a agulha da radiola em seu lugar habitual, a lareira.

Afrouxo a gravata preta em torno do meu pescoço. Afundo minhas costas na velha poltrona de couro reclinável na casa do meu pai. Passo os olhos pelas fotos sobre a velha lareira de tijolos. Deixo que o silêncio me faça companhia.

Levo a garrafa de uísque cheia até os meus lábios.

Minha mão, dentro de uma maldita tala preta removível, repousa latejante sobre o braço da poltrona. A costura na minha pele sobre as costelas agoniza, mais uma cicatriz. Mais uma dor.  Dores sem analgésico. Não tomaria a porra de nenhum analgésico. Não quando não existia remédio para a dor que não podia curar.

Durante os últimos dias sentia-me no automático. Cinco torturantes dias presos em uma cama de hospital, com um policial na minha porta, que apenas serviu de escudo para impedir as visitas – exceto tio Jim e o Elliot -, não queria ver ninguém. Queria ficar sozinho.

Por sorte tive alta. Se sorte for ser liberado para o funeral do seu pai, com o corpo reduzido a cinzas em uma urna dourada, e seu rosto retratado em uma enorme foto posicionada estrategicamente no altar. Pulei a parte do discurso. Aquilo tudo era um show cheio de ironias, nem religiosos éramos. A única vez que orei, não fui atendido. Tomás Baylor nunca tinha pisado em uma igreja, pelo menos nunca tinha visto, mas tudo foi organizado por Jim.

Melhor assim.

Assim pude ser o último a chegar e o primeiro a sair, pulando os apertos de mãos, os abraços e as palavras sem sentido ou emoção, apenas uma praxe para os presentes curiosos ou desocupados. Poucos naquela cidade gostavam do meu pai, o respeitavam por causa do irmão. E estavam lá apenas por causa dele, para agradar o xerife local.

Minha presença era descartável. Antes, durante, ou depois da cerimônia, minha presença não faria diferença. E eu não queria estar presente durante a comilança no salão paroquial, não precisava das condolências.

Estava no fundo do poço. Era irônico, porque achava que conhecia aquele fundo, porém não. O fundo era aquilo. O fundo era aquela poltrona. O fundo era a garrafa de uísque. O fundo do poço era a ausência de alguém que amava. Mais um para a longa lista.

Suspiro. Bebo.

When I was just a baby my mama told me: Son Always be a good boy, don't ever play with guns. But I shot a man in Reno just to watch him die — cantarolo junto com o sr. Cash.

Meu pai amava Johnny Cash, dizia: filho isso que é música. Agora, ali, sentado em sua poltrona as lembranças começavam a se embaralhar e aparecer, coisas tão pequenas esquecidas no tempo. Coisas boas. Outras coisas ruins. Eu queria agarrar todas, segurar e guarda-las. Sabia como era perder alguém. Sabia como as lembranças, cheiros, sabores e palavras tornavam-se fracas ao longo dos meses. Como tudo, como aquelas pessoas que nos deixavam pareciam uma lembrança de outra vida.

Fecho os olhos. Inalando o máximo possível do aroma daquele lugar. Engulo o nó cheio de emoção na garganta. Bebo, afogando tudo. Não iria chorar. Não. Não podia abrir aquela represa. Não. Mesmo sabendo que tinha chegado longe, mesmo sabendo que a vida tinha me engado e quando achava que já conhecia o fundo do poço, ela me mostrou que não.

Não precisava da doutora Chata para dizer que a minha vida tinha girado em torno do meu pai. Jogava hóquei para termos algo em comum. Entrei para a marinha para me afastar dele. Permaneci em Bayfield para cuidar dele – o homem que tinha me estendido a mão quando perdi tudo. Trabalhei nos últimos meses para pagar as dívidas dele. Aceitei a merda de um programa por ele.

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