A grávida que você deixou para trás

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Segundo Marcela, Tales teve morte cerebral na madrugada, seu corpo continuou funcionando normalmente, inclusive seu rim transplantado, mas seu quadro neurológico era irreversível. Logo depois da equipe médica tê-la comunicado, lhe deram um tempo a sós com o irmão já extubado e então desligaram os aparelhos que o mantinham vivo.

Otávio olhou de um lado para o outro vendo a multidão de jovens tatuados, vestidos com jaqueta de couro e uma camisa com a foto de Tales estampada. Escolheram uma foto que não representava seu melhor amigo, Taleco estava todo vestido em preto, de braços cruzados e cara fechada. Julgavam-se tão amigos do falecido e não sabiam que a maior virtude dele era aquele sorriso metálico. Eles eram muitos e, se juntasse todos, não dava um. Nenhum deles chorava, alguns até forçaram alguma lágrima ao se aproximarem do corpo no centro da sala. Eles que se julgavam os melhores amigos dele nos últimos tempos, companheiros de roubo de moto, gente que empurra os amigos para o buraco e depois aplaudem.

O advogado sentiu um pouco de raiva ao ver aquela turma de estilo diferenciado passar por ele. No fundo, tinha um pouco de ressentimento por seu irmão tê-lo trocado por aquela gente que sequer conseguia chorar em seu velório.

Era desesperador ver o tio Mauro abraçado ao corpo do filho. O velhinho sempre usava um boné com a logo da escola em que se aposentou sobre os cabelos brancos, Tales herdou as sardas do pai, sua pele já estava bem enrugada, seu Mauro não deveria estar passando por isso nessa idade. Seu choro era alto e desesperado, conseguia ser pior do que a tia Sílvia.

A tia Sílvia... Ela não quis ir no enterro. Não via o filho desde antes do acidente e se recusava a vê-lo machucado, deformado, sem vida. Não, dona Sílvia não iria enterrar seu filho, esse não é o certo. A mãe de Tales ficou com ela, aquela era a única pessoa que tinha coragem de consolar a amiga, nem as próprias filhas encaravam a dor da mãe.

A dor daquele pai era tanta que lhe roubou o ar, lhe roubou a cor do rosto e ele começou a passar mal. Otávio correu para levá-lo para se sentar e se agachou diante do pai do amigo.

– Tio Mauro, respira fundo, levanta o rosto – ele orientou enquanto Pamela abanava o rosto do pai com uma toalhinha.

– Por que Deus não me levou no lugar dele?! – o velhinho indagou revoltado às lágrimas.

Otávio engoliu seco. Não tinha resposta a ser dada.

Por que viver só 25 anos? Por que ele não mereceu uma segunda chance se tinha o coração tão bom? Muitas perguntas sem resposta. Tales não era mau, morreu porque era bobo, influenciável e não levava a vida a sério.

Marcela passou a mão pelo rosto do irmão e pediu várias vezes para que ele se levantasse, para que acordasse e voltasse para ela porque a mais velha não saberia viver sem seu irmãozinho. Foi ela que pagou as aulas de bateria, que dava os presentes caros, que levou Tales e Otávio para viajarem o mundo a cada período de férias, que pagou a faculdade e apostou no futuro do irmão.

Otávio esperou que a multidão de parentes e conhecidos se afastasse do corpo para que ele pudesse contemplar o amigo. Respirou fundo percebendo que não tinha mais o que adiar, aproximou-se do caixão. As flores cobriam seu corpo, ele parecia menor, não dava para contemplar os 1,85 de seu amigo. Seu rosto ainda estava machucado do acidente, a região ao redor do olho esquerdo estava levemente arroxeada, seus lábios estavam pálidos. Não era Tales ali, não dava para sentir a vida.

As lágrimas desceram no automático quando percebeu que não tinha nenhuma despedida a ser feita ali, Tales não estava mais entre eles, não estava naquele corpo e seu amigo só se tornou matéria. Passou a mão pelos cabelos castanhos do falecido, ao menos a textura macia dos cabelos ondulados estavam ali. Desfez o penteado que fizeram nele, Tales odiava o cabelo arrumado. As lágrimas pingaram sobre o rosto sem vida e os soluços já saíam mais descontrolados de sua boca. Não disse em voz alta, mas clamou em pensamento que não saberia como viver sem Tales dali em diante. Quem seria seu confidente?

O que você deixou para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora