A tristeza que você deixou para trás

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De óculos, à meia luz, Ana Clara tinha uma das madrugadas mais prazerosas daquele junho até ali. Não estava acordada para chorar, não se sentia triste. Aquela que vinha morrendo de sono nos últimos meses não conseguia dormir, sentia a cabeça do bebê entre seus seios e aquilo machucava ao se deitar, sufocava seus pulmões e dava angústia. Na última ultra, seu menino estava muito bem sentado, sem qualquer indício que estava preparado para sair enquanto a mamãe só aumentava de tamanho. O óleo em sua barriga colava na camisa de algodão, a fumaça do chá de camomila subia e beijava seu rosto, os óculos de grau estavam posicionados em seu rosto e os cabelos presos num coque. Sentia-se calma enquanto deslizava a caneta sobre o álbum que ganhou da Pamela.

As perguntas a faziam sorrir imaginando seu Tales lendo aquilo no futuro, a fazendo recordar desse tempo sob uma outra perspectiva, sob uma ótica mais doce. Aliás, é isso que seu filho é. Tales é doce, alegre, empático. Ela sente isso, é assim que ele vai ser. Seu bebê torna seus dias mais suportáveis só por existir.

Sempre que a solidão lhe abraça, um movimento involuntário surge dentro da sua barriga como um "eu estou aqui, mamãe" silencioso. E o menino atrai gente. Ana já imagina seu filhinho cheio de amigos, cheio de sorrisos, cativante como o pai dele era. Todos a rodeiam só por causa do pequeno Tales em sua barriga.

"Mamãe descobriu da minha existência com...", vinha escrito logo na primeira pergunta. "...Duas semanas", ela preencheu.

"A primeira reação da minha mamãe foi...", ela pausou um tempo pensativa sobre o que responder. "Medo", escreveu.

"A primeira reação do meu papai foi...". Sem qualquer indício de lágrima, tristeza ou melancolia, recordando-se do dia que ela o aceitou de volta, do dia que aceitou mais um milhão de promessas sobre o quanto ele queria mudar pelo filho deles, lembrou daquele sorriso que daria tudo para ver de novo.

— Você ainda vai ser minha mulher, Ana Clara da Costa. — ele sussurrou em seu ouvido no dia da reconciliação — Seremos eu, você e o nosso bebêzinho.

Não foi do jeito que ele disse que seria, porém aquelas poucas semanas valeram para ela escrever "...Extrema felicidade".

Tinha resposta para quase todas as perguntas, só travou na parte das perguntas sobre o parto, era isso que faltava para tudo ser concluído e ver o rostinho do seu bebê. Começou a colocar as fotos correspondentes a cada período pedido, ela revelou as imagens mais especiais daqueles meses para deixar para a posteridade — "minha primeira foto na barriga da minha mãe", "meu primeiro ultrassom"...

Ela sorriu ao encaixar no envelope transparente a "minha primeira foto com meu pai". Clara mesmo que tirou aquela foto da câmera de seu celular, era a bochecha de Tales colada contra seu umbigo, os olhos castanhos se voltavam para a câmera dando a ideia de que ele olhava para ela. Passou o indicador pela imagem do rosto dele com carinho.

Tinha dias e dias. Algumas vezes a saudade doía, algumas vezes os momentos bons se sobrepunham à tristeza.

Levou todas as fotos e o álbum para a casa de seu pai para se ocupar com essa tarefa durante o fim de semana. A porta foi destrancada com cuidado para não fazer barulho, sua atenção se voltou para a entrada onde seu pai tirava a arma da cintura, tirava munição de dentro e a colocava sobre uma prateleira acima de sua cabeça. Nada era mais familiar que aquela imagem, cansou de vê-lo repetir aquele mesmo ritual sempre que voltava do trabalho. Trocava de roupa antes de voltar para casa, só precisava descalçar as botas para entrar na sala e perceber a luminária de mesa iluminando o rosto da sua filha. Sorriu ao percebê-la acordada e foi em sua direção.

— Acordada a essa hora? Ficou me esperando? — questionou, curvando-se para beijar o topo de sua cabeça.

— Estava meio incômodo para dormir, resolvi tomar um chá para ver se acalma esse garoto — esfregou a mão sobre o topo da barriga.

O que você deixou para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora