O amigo de verdade que você deixou para trás

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Era estranho entrar na casa número 206 da Rua Belém, ver a trave do gol em que jogou futebol por toda infância naquele quintal, ver a sombra da risca de giz no chão onde eles desenharam uma amarelinha todos os dias por muitos anos, entrar na sala sem poder gritar "Taleco!" ou assistir qualquer bronca da tia Sílvia no Tales. Aliás, Otávio percebeu que aquela casa andava silenciosa demais.

Tomou um café com tio Mauro, tia Sílvia estava na igreja, ele ainda parecia bem abalado, contou que decidiu não doar as roupas do filho enquanto algumas delas ainda guardassem o perfume dele, perguntou sobre a vida de Otávio e agradeceu pelos anos de amizade que dedicou ao seu filho. Por fim, seu Mauro deixou que Tavinho ficasse um pouco no quarto do Tales.

As paredes num tom bem fechado de azul deixava o quarto meio escuro, Tales gostava disso, sentia dor de cabeça com luz muito forte. Otávio caminhou até a janela e a abriu com certa dificuldade porque ela estava emperrada há anos e só abria até a metade, o vento do lado de fora entrou com tudo dentro do quarto desfazendo o cheiro de mofo por estar trancado há muito tempo.

Foi até a velha grade preta que ficava ao lado do guarda roupas. Na época da escola, ele colava os avisos sobre trabalhos e provas ali. Depois de um tempo, passou a pendurar fotos. Sorriu ao ver os vários registros de idas ao estádio de futebol que eles tinham, fotos do dia da formatura da faculdade ao lado das irmãs, as fotos mais recentes dele eram se exibindo em motos de luxo que ele roubou.

Desgrudou uma foto em formato polaroid e aproximou de seus óculos. Eram Tales e Ana Clara de perfil, suas testas encostavam, dava para ver os olhos dos dois sorrindo. Eles eram bonitos e até parecidos em certo ponto, os dois tinham cabelos claros e rostos angelicais, tinha uma grande chance do filho deles ser tão bonito quanto. Virou a foto e encontrou a letra do amigo dizendo "minha princesa".

Otávio se sentou sobre a cama do amigo e pegou o celular dele em suas mãos, plugou no carregador e ficou encarando o ambiente ao seu redor. Não sabe como Ana Clara e Tales se conheceram, lembra-se apenas do amigo lhe mostrando uma foto da garota e pedindo sua opinião. Depois que disse que era muito bonita, ele disse que estava pegando.

— Eu não. Ela que está me pegando. — foi o que Tales disse — Estou amarradão nessa menina.

Aquele início deles foi bom, Tales foi deixando as corridas de moto de lado, só queria saber de correr atrás da Ana Clara, ele teve que insistir muito para que ela aceitasse ser sua namorada.

O advogado perdeu a conta de quantas vezes teve que ouvir os lamentos do amigo sobre algum término deles, era o típico relacionamento ioiô. Quando entendeu o quão amarrados aqueles dois estavam um ao outro, apenas dava de ombros e dizia para Tales se acalmar que logo eles estariam juntos de novo. Otávio entendeu logo que Ana Clara não era do universo do roubo de motos, era uma garota direita e aqueles conflitos de relacionamento sempre se devia à criminalidade.

Confessa que julgou Ana Clara quando Tales foi preso e ela só apareceu para pedir que ele a esquecesse. Mas, caramba, é realmente complicado exigir que uma garota tão jovem se submeta a revistas constrangedoras para visitar o namorado problemático na cadeia! Ainda mais se tratando de alguém que não tinha a mínima intenção de mudar.

A porta se abriu revelando a senhorinha enrugadinha com jeito de vó, ele ficou feliz de ver um sorriso no rosto da mulher e estendeu os braços para ela pedindo abraço. Tia Sílvia foi até ele, sentou-se ao seu lado e se escondeu no peito do mais alto. Otávio beijou o alto de sua cabeça e sorriu para ela.

— Espero que a senhora não se incomode por eu ter entrado aqui — falou.

— Imagina, meu filho! A casa é sua — ela sorriu.

O que você deixou para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora