— A dor passou? — perguntou baixinho.
— Totalmente. — ela respondeu ainda com a voz fraquinha — Também não sinto minhas pernas.
— É só por um tempinho — tranquilizou passando o polegar pela bochecha vermelha de tanto choro de dor na madrugada.
— É angustiante — murmurou.
— É por um bem maior — retrucou.
Ana Clara encarou o moreno acima dela, a touca cirúrgica cobria seus cabelos escuros, a máscara servia para impedir que algum espirro ou tosse contaminasse o ambiente enquanto o corpo de Clara estava sendo aberto, só os olhos estavam ao seu alcance. Escuros como a noite, com círculos arroxeados ao redor deles que os óculos não conseguiam esconder. Ele também estava cansado, fisicamente e mentalmente, também estava sem dormir, deveria estar com fome, no entanto estava ali de bom grado, por mais que não fosse obrigação dele. Mais calma, ela pôde raciocinar que Otávio não fraquejou nenhuma vez naquela noite, não deixou-a se sentir sozinha, abandonada. Em alguns momentos, parecia que o advogado estava sentindo a dor dela.
— Otávio, — ela chamou — eu nunca vou conseguir te agradecer.
— Não se preocupe com isso, — respondeu — meu presente chega em alguns minutos — sorriu.
Os dois ficaram ali quietinhos, a mão de Otávio não parava de mexer no cabelo dela só para que soubesse que ele estava ali. O moreno prestava atenção no diálogo entre os médicos, não queria perder nada caso algo fugisse do esperado. Em sua mente, estava rezando. Falou com Deus depois de tanto tempo. A forma como sua perna mexia indicava o tamanho da ansiedade. Distraiu-se e olhou para cima, na direção da forte iluminação cirúrgica, fixou os olhos ali até começar a incomodar suas vistas. Um arrepio percorreu seu corpo, olhou para os pêlos do próprio braço completamente eriçados e sorriu. Foi como se uma brisa o envolvesse por poucas frações de segundo.
Ele está aqui.
— Deu trabalho, mas conseguimos. — disse a voz já conhecida da médica — Nenhuma hemorragia ou imprevistos. — ela disse com o tom de voz animado — Papai, eu não vou poder te dar a oportunidade de cortar o cordão umbilical, temos uma situação um pouco difícil aqui.
Otávio levou um pouco mais de trinta segundos para entender que o "papai" a quem ela se referiu era ele.
A mão de Ana Clara se apertou na dele quando viu de relance o corpo ensanguentado nas mão de alguém da equipe médica. O ângulo de Otávio permitia ver um pouco melhor a médica lidando com o cordão umbilical, suas mãos gelaram e seu coração começou a dar pancadas contra a caixa torácica, o suor brotou em sua testa. Caramba! Ele não se lembrava de ter ficado tão nervoso assim desde a primeira vez que foi fazer uma sustentação oral no Tribunal do Júri.
O silêncio angustiava Ana Clara. Se já tinham o tirado, por que não estava chorando?
— Vem ser o primeiro a pegar o Tales no colo — chamou a médica.
Ele se levantou no automático, a ansiedade se misturou com o medo e virou uma coisa só. Não foi ele que tomou anestesia na coluna, porém não estava sentindo muito bem suas pernas, viraram gelatina. Aproximou-se da enfermeira com o embrulho mais amado do mundo, sentia-se indigno de ser o primeiro a segurá-lo, era responsabilidade demais. Nem percebeu a manta que outra auxiliar de enfermagem colocou sobre seus braços e logo a enfermeira o ajudou a acomodar um corpinho frágil. Os olhos queimaram conforme sentia o bebê quentinho nele. Piscou para clarear a visão sob as lágrimas, não queria perder nenhum detalhe do seu Tales.
Ele era maior do que esperava que fosse, bem mais gordinho também. Não tinha qualquer fio de cabelo na cabeça, seu corpo estava coberto por uma mistura de sangue com um tipo de sebo branco. Só quando a enfermeira soltou o corpo do bebê completamente que ele percebeu o quão molinho e escorregadio Tales estava. Deu medo de deixá-lo cair e deu mais medo ainda de soltá-lo, não queria se separar dele nunca mais.
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O que você deixou para trás
RomanceTales passou a vida buscando aventuras e liberdade sem parar para perceber todas as coisas boas que o cercavam. Otávio passou a vida arrumando tudo o que o melhor amigo bagunçava e, com a morte dele, não foi diferente. Mesmo vivendo a maior dor da s...