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Rindou e Ran nunca pareceram tão decepcionados.

Talvez quando eu tivesse entre meus doze anos, meu maior medo era que de algum modo eu ferisse eles. Não sou capaz de lembrar em que momento da minha vida eu finalmente entendi que aquilo não era só amor, também era sacrificio. Abdicar de suas adolescências porquê uma criança dependia deles, porquê deus me odiava e meus pais estavam mortos, porquê eu nunca sentiria o amor da minha mãe e muito menos o toque do meu pai. Mas eu tinha eles e aquilo era tudo que eu podia aguentar, e então nada seria tão ruim. Eu percebi que gradativamente mesmo que eles estivessem sangrando em cima de suas próprias dores, nunca mostrariam aquilo pra mim pois achavam que deviam continuar fortes. Eu queria ter sido egoista pra fingir que aquilo não me afetava, que a culpa não me afetava mas não era assim, eu não me sentia capaz de não permitir que a dor deles também fosse a minha.

Aos dezesseis anos Ran sofreu um acidente de moto. Não recebeu nada muito além de uma perna quebrada e uma bronca de Rindou sobre como ele conseguia ser péssimo em pilotar até uma bicicleta. Nessa época eu já tinha noção de que mesmo que ele estivesse sorrindo como se não fosse nada, suas pernas estavam comprometidas e o medo de estar morto passou pela sua cabeça muitas vezes antes de estar ali. Naquele dia, eu não consegui fazer nada além de ignorar sua existência por uma semana. Devem se perguntar qual tipo de irmã larga o próprio irmão com uma perna quebrada pela casa e se tranca no quarto como uma mimada. Bom, normalmente o tipo que é a causa da perna quebrada. Naquela noite eu estava com fome e nada parecia tão saboroso quanto a nova promoção de lanches do Burguer King, e bom, depois de chorar quase todas as dores e convencer ambos de que não, não poderia esperar até amanhã pra comer meu lanche, Ran não tardou em dirigir na chuva pra me buscar o meu tão sonhado lanche. Mas moto e chuva não são uma boa combinação, ainda mais se sua preocupação é saciar a vontade de sua irmãzinha mais nova depois de um juramento patético de que as vontades dela sempre prevaleceriam. Bom, depois daquele dia devo dizer que comer Burguer King é algo que eu definitivamente não faço mais.

Eu não era capaz de encarar as pernas de Ran e muito menos de olhar nos olhos dele sem sentir ódio por mim mesma. Afinal era a merda de um lanche, e isso nunca seria nada comparado a segurança de uma pessoa que vem garantindo meu bem estar a anos.

Se me perguntassem quando criança se eu gostava de algum herói, eu não hesitaria em pensar nos meus irmãos. Não posso dizer que tive uma vida ruim, financeiramente falando eu sempre tive tudo do bom e do melhor, mas o dinheiro nem sempre é a chave para uma infância feliz e bom, acho que eu cresci cercada de muito espaço  naquela casa e nunca de abraços. Eu amo tudo que ambos fizeram pra mim e a forma como estiveram presentes em todas minhas quedas, mas a distância e o sigilo faziam parte dos sacrifícios que nós tivemos que passar para que Rindou e Ran possuíssem a certeza de que eu não me ferisse. Eu sabia que eles sempre estavam ocupados socando o rosto de alguém e garantindo que nenhum mal fosse me ocorrer. E anos se passaram até que eu tivesse a lucidez de que minha segurança podia não ser importante pra mim, mas era indispensável para eles. Não me envolver em gangues ou ser amiga de pessoas ligadas a alguma gangue era uma parte importante das poucas regras que eu era obrigada a seguir. Eu diria que na realidade, era a unica regra de fato importante.

Aos quinze anos eu acordei com um ferimento na nuca. Eu não me lembrava do porquê aquilo estar ali e nem como eu havia chegado naquele hospital, a única coisa que eu conseguia sentir era a dor aguda na minha cabeça e o vazio enorme em meu peito que me acompanhava até os dias de hoje. Naquele dia os rostos dos meus irmãos eram claros na minha mente, suas expressões de dor e preocupação denunciavam que estavam naquele hospital a  muito mais tempo do que seus corpos conseguiam suportar. As olheiras enormes e os lábios ressecados e rachados partiam meu coração e eu nem sequer sabia o motivo de estar ali. Quando acordei um peso parecia ter saltado de seus ombros e seus corpos correram até mim. Entendi naquela hora que não importava nada em suas vidas a não ser eu. Naquela mesma noite, Rindou e Ran me fizeram prometer que manteria distância da Tohman, que não cruzaria o caminho deles e que se algum deles me procurassem eu deveria avisa-los, o tom sério de suas vozes denunciavam que provavelmente, minha segurança não era importante pra Tohman.

Eu prometi isso, e depois daquele dia eles não disseram nada muito importante sobre meu acidente, que aquilo era apenas algo que consegui caindo da escada e que só não me lembrava porquê a pancada fora grande. Mas eu sabia que estavam mentindo, algo havia acontecido porquê quando voltei eu sentia que não era a mesma coisa. Meus dias se tornaram nublados e tristes e aquele vazio no meu peito se tornou parte da minha rotina, eu havia aprendido a conviver com aquilo. Bom, até quebras as regras.

Agora em minha frente a expressão dos meus irmãos entrava em algo como decepção e medo e eu nunca havia visto algo mesclar assim em seus rostos.

Não minta. — Rindou susurrou. — Está saindo com alguém da Tohman?

Meus olhos se arregalaram e meu corpo ponderou pro lado por um segundo.

Não. -— Menti. Meu rosto se tornou sério e eu queria não estar sentindo tanta raiva de mim mesma naquele instante.

— [Nome], tem uma jaqueta de couro no seu quarto, que eu vi quando fui pegar as roupas pra lavar hoje cedo. Entende que mentir é pior? Eu não me recordo de você ao menos gostar de usar couro. — Ran respondeu. O tom de voz sério me assustava, porque não era comum nele.

A Tohman vai te matar, [Nome] — Rindou soltou. — Eles não vão parar, porquê o lider deles é um assassino. Toda onda de matança que Tóquio vem recebendo, é deles.

E vocês são diferentes? — Rebati. Mordi os lábios, pois sabia que a Tohman não era assim. — Matam pessoas todos os dias, e eu pensei que era capaz de lidar com suas mãos pingando sangue mas não sou.

— Está se ouvindo? — Ran perguntou — Fizemos o possivel para te criar. Até aprender a viver com o sangue nas mãos, não pode ser grata e ficar longe desses assassinos?

— Eu não preciso de sangue, de segurança. Eu preciso de presença! Preciso que estejam aqui. E isso não acontece a um tempo bem relevante — Nessa hora meus olhos já estavam marejados.

O que você quer nem sempre é o que precisa ter para estar viva. O amor machuca [Nome], e nos dói ficar longe de você mas se isso for o necessário para te deixar segura, é o nosso dever aceitar. — Respondeu Rindou. Seu rosto era indecifrável.

Eu não ligo pra toda essa merda. Eu não preciso de cães de guarda eu preciso de IRMÃOS! — Gritei a última parte.

Rindou e Ran pareceram afetados e eu nunca me senti tão filha da puta como naquele momento. Eu deveria ser grata, mas estava jogando minjas frustrações neles.

— Nós te amamos, tanto que você ainda não vai ser capaz de compreender. Agora não, mas no futuro eu tenho certeza. — Ran se aproximou, seus dedos seguraram meu rosto molhado e depois segurou minha cabeça passando o indicador pela minha cicatriz, na nuca. Juntou nossas testas e susurrou. — Vai entender, que nada nunca vai superar o medo que é não te ter mais aqui.

Só não minha mais pra nós. Se precisar de algo, diga. Somos familia, precisa ser aberta sobre o que está sentindo — Rindou disse, se aproximando e abraçando nós dois. — Fique segura, porquê você é nossa casa [Nome]. Se estiver aqui, sempre teremos um lugar pra voltar.

Finalmente desabei em seus braços, que me acolheram como se eu ainda fosse uma garotinha de doze anos. Eu sabia, que machucar eles abriria uma ferida muito grande em meu coração, para sempre.

— A jaqueta é do Takemichi. Ele me emprestou pra que eu e Hina fossemos jantar ontem. Foi só isso — Menti.

Um peso pareceu ter saido da sala de estar.

Acreditamos em você, ograzinha. — Me doeu terem acreditado também. A mentira sempre pesa mais.

Eu queria chorar e gritar para eles não acreditarem e pedir desculpas por aquilo. Mas nada saiu da minha boca além de soluços d dor.

Naquela sala, eu plantei uma mentira que seria a ruina das pessoas que eu mais amava. E então eu entendi toda aquela dor em meu peito.

Só o amor, pode machucar assim.


HAITANI, baji keisuke.Onde histórias criam vida. Descubra agora