Capítulo 02

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ANY GABRIELLY

Abri a porta de casa e sorri ao ouvir a trilha sonora de Casablanca, As Time Goes By, tocando no velho toca discos de vovó. Ela amava aquele filme, e fora ela quem me ensinara a gostar dele também. Ou melhor, ela me ensinara a ser uma apaixonada por cinema antigo, preto e branco, de raiz.

De acordo com ela, não se fazia mais filmes como antigamente.

Deixei as sacolas das compras sobre a bancada da cozinha, para arrumá-las depois, e segui a voz da velhinha, porque era irresistível. A cena era sempre a mesma – ela de olhinhos fechados, cantando quase que involuntariamente, sorrindo e, provavelmente, lembrando do tempo em que tinha a minha idade.

Consegui observá-la por alguns instantes até que se voltou para mim.

— Ah, querida, já chegou! — Ela abriu aquele sorriso adorável, girando em sua cadeira de rodas. D. Márcia conseguia andar, com muita dificuldade, mas sempre que ficava sozinha, eu preferia colocá-la na cadeirinha para que se locomovesse com mais segurança. Não era teimosa, graças a Deus, e sempre obedecia.

— Desculpa a demora, vó, mas o mercado estava cheio. — Ela não era minha avó, avó real. Era tia da minha mãe, mas me tratava como neta, já que não tivera filhos.

Voltei para a cozinha, para organizar as compras, e ela girou a cadeira atrás de mim, me seguindo.

— Não se preocupe. Fiquei em boa companhia. Aliás, deveríamos ver este filme novamente qualquer dia.

— De novo? Não o vimos há uns três meses? — perguntei, sorrindo, enquanto pegava o maço de alface da sacola para lavar.

— Humphrey Bogart nunca é demais. Não se fazem mais homens bonitos como aqueles — falou, sonhadora, repetindo sua ladainha de sempre. — Ou melhor, fazem sim. Temos dois morando aqui do lado.

Não pude conter uma risada.

— Olha que coincidência. Acabei de encontrar um deles no elevador.

— Ah, o Josh

— Acho que era o mais novo. O mais simpático. — Eu tinha esbarrado uma única vez no tal Josh, mas ele nem sequer olhou na minha cara.
Sabia que era ele, porque minha avó o descrevera uma vez, e certamente não havia homens como ele dando em árvores. Não com aqueles olhos azuis que mais pareciam duas safiras cristalinas

O irmão era bonito também. Muito. Mas tinha um jeitão mais cafajeste que não me agradava em nada. Se Josh fosse apenas sério, isso seria um afrodisíaco para mim, mas o cara era mal educado mesmo. Nem o meu bom dia ele retribuiu.

— Ah, o Noah. Um amor de garoto. Os dois são.

— Vó, eu sinceramente não consigo acreditar quando você fala algo assim. O tal do Josh é um grosseiro.

— Você não o conheceu antes. Como te disse, eu os vi crescer. Josh sempre foi mais calado, mais contido, mas era gentil e atencioso.

— Para quem te conhece desde pequeno ele é bem negligente. Poderia vir te ver algumas vezes. — O mais novo, ao menos, tinha a desculpa de morar no prédio há pouco mais de dois meses.

— Que nada, querida. Eles são jovens. Além do mais, já te falei que Josh passou por poucas e boas.

Dei de ombros. Ela sempre me dizia a mesma coisa, mas nunca se aprofundava para me contar o que realmente tinha acontecido. Sabia que era viúvo e que tinha um bebezinho fofo, mas nada mais do que isso. Como o conheci depois de sua perda, não poderia imaginar como era antes da morte da esposa. Ainda assim, eu precisava ter um pouco de empatia, né? Perder alguém a quem se amava tanto, especialmente tendo um filhinho tão pequeno para criar, poderia mudar a cabeça de qualquer um.

Continuei remexendo nas sacolas, percebendo que tinha me esquecido de comprar mandioca – exatamente o ingrediente principal para fazer a sopa que vovó adorava. E eu já estava prometendo fazer para ela há uns bons dias.

— Vó, você fica bem sozinha por mais alguns minutos? Esqueci a mandioca.

— Menina! Mas não precisa voltar no mercado só por isso. Podemos comer outra coisa. O que acha de pedir naquele negócio lá que você pede pelo celular? Uma pizza, de repente.

— O iFood? — Não pude deixar de rir, porque ela era uma gracinha. — Podemos deixar as besteiras para o final de semana. Hoje você precisa comer direitinho, mocinha. — Enquanto falava, fui pegando a minha bolsinha de moedas, que era tudo o que eu precisava. — Não demoro, vó. Tente não sassaricar demais. Fique sentadinha aí, por favor.

— Pode deixar, filha. Vou continuar aqui com a música.

Sorri para ela e saí.

Mexendo na bolsinha, distraída, mal percebi que ia de encontro a alguém.
Ou melhor, o corpo sólido de uma pessoa muito, muito alta, colidiu com o meu.

— Desculpa — pedi com educação, erguendo os olhos e percebendo que se tratava exatamente do rabugento mencionado minutos antes.

Que sorte a minha.

Ou talvez fosse, sim. Por mais seco e de mal com a vida que ele fosse, o bendito era bonito como o pecado. Ele não era só alto, mas tinha ombros largos, braços poderosos sob o terno bem cortado e um rosto de maxilares marcados. Uma barba rala os cobria, dando um ar de desleixe, como se ele não se importasse com a aparência. O cabelo era farto, e bem loiros, e ele provavelmente não o cortava há algum tempo. Eu sabia que ele era rico, que era dono de uma empresa de alguma coisa que eu não fazia ideia do que era, mas não tinha o ar todo engomadinho. Ao menos não naquela sua versão de luto.

E ainda havia os olhos – daquele tom perfeito, enigmático. Pena que logo acima deles havia uma carranca nada simpática.

— Deveria olhar por onde anda.

Aquilo era sério? Ou melhor... aquele homem realmente existia? Como era possível que fosse tão antipático?

Eu conseguia entender que uma pessoa de coração partido poderia se fechar para a vida, mas ser grosseiro com os outros não era justificável.

— Eu pedi desculpa — falei de forma enfática e o idiota nem me respondeu. Tudo o que fez foi andar até o elevador, esticar o braço e apertar o botão, chamando-o.

Não consegui desviar os olhos dele, completamente incrédula de que realmente iria me tratar daquela forma.

Eu deveria insistir e lhe dizer poucas e boas. Fazê-lo entender que nada, nem mesmo a pior das histórias, o pior dos passados, justificava aquele tipo de atitude. O homem era um ogro, e eu não ia permitir que me tratasse com tanta frieza.

Só que eu era péssima em conflito. Evitava brigas e discussões como o diabo foge da cruz e normalmente perdia os argumentos todos antes mesmo de conseguir abrir a boca. Eu era do tipo que formulava respostas perfeitas minutos depois que a conversa tinha terminado.

E eu era péssima com timings também. Tanto que quando respirei mais fundo, tomando fôlego para falar, o elevador chegou.

Obrigada, universo, por estar do  lado do bonitão mal-educado!

Bem, mas nós ainda tínhamos doze andares pela frente, e eu poderia dizer a ele tudo o que estava pensando. De repente informar educadamente que não era de bom tom ignorar pedidos de desculpas de vizinhos. E se um dia ele precisasse... sei lá... de açúcar? Ou de uma ajuda em um momento de necessidade? Ele tinha um bebê, né?

Isso rapidamente caiu por terra no momento em que me lembrei que o cara era milionário. Rico. Cheio da grana. Ele nunca ia precisar de mim. E eu esperava nunca precisar dele.

Ainda assim, minha avó parecia ter certo apreço por ele, e já a tinha ouvido comentar mais de uma vez que adoraria receber uma visita e brincar um pouquinho com o neném. Talvez isso o comovesse, vai saber.

Porém, no momento em que tomei coragem para abrir a boca, todas as luzes do elevador se apagaram, e a jeringonça parou de se movimentar.

O que diabos tinha acontecido?

Continua....

Mais um capítulo pra vcs. Espero que estejam todos bem

O Último Desejo ¡! BEAUANY Onde histórias criam vida. Descubra agora