Capítulo 32

1.3K 129 108
                                    

Eu me lembro do cheiro dos girassóis murchos, que a mamãe insistia em plantar no quintal. Me lembro da nossa casa amarela e da árvore grande no começo da rua. O banco de madeira velho que rangia na varanda, e que era o melhor lugar do mundo pra aproveitar o Sol morno de fim de tarde, mastigando um pedaço macio do bolo de laranja que só minha mãe sabia fazer. O sabor daquele bolo.

Me lembro de Medina, em Ohio, a cidade onde eu nasci e cresci até a chegada do apocalipse. Os recreios na escola, onde eu sempre conseguia uma desculpa pra fugir das minhas amigas e ficar admirando uma garota loira, duas séries acima da minha, com a qual eu sonhava em me casar no futuro. Mesmo que nunca sequer tenha descoberto o nome dela. As noites de filmes com as minhas amigas, e o cheiro do esmalte azul ciano que eu sempre usava. O deslumbre de ler Harry Potter pela primeira vez.

A longa viagem que fazíamos todos os verões até Bay Village, no Condado de Cuyahoga, para passar as férias na fazenda do vovô. Me lembro do cheiro da terra lamacenta na beira do Lago Erie, onde passávamos as tardes pescando, para no final do dia jantar o peixe frito que a vovó reclamava pra fazer porque não gostava do cheiro. As histórias que a vovó contava de sua juventude no Brasil, sua terra natal, e do sonho que eu tinha de visitar o país.

Me lembro dos natais em família. Da sensação de vitória quase absoluta, que era colocar a estrela coberta de glitter no topo da árvore da natal, após passar horas pendurando enfeites nos ramos com Kalel e Paul. Tantos cheiros, sabores, sentimentos. Sensações. Essas coisas que pertencem unicamente a mim, porque apenas eu as vi daquele modo, naquele momento. As pequenas memórias que fazem de mim alguém.

Eu nunca dei o valor real que essas sensações mereciam até que elas se tornassem apenas lembranças. A vida é um ciclo, foi o que me disseram. Você nasce, cresce e morre, e eu acreditei por muito tempo que a vida era inteiramente baseada nesse conceito tão simples e limitado. Porém, essa foi a maior lorota que alguém já me contou.

Existem tantos mistérios entre o "nascer" e o "morrer." Crescer é difícil, doloroso e esquisito. Mudanças nunca me assustaram, pelo menos até que eu fosse capaz de nota-las, e então eu me via aterrorizada com o poder do tempo sobre nós. A sensação de notar que eu estava mais alta que a pia do banheiro, a qual eu lutava pra alcançar apenas alguns anos antes. A dor de não ter mais a mamãe reclamando da bagunça no meu quarto.

Eu não tinha medo de morrer quando criança, porque não tinha notado realmente a existência da morte. Mesmo depois de tantos anos matando e quase morrendo todos os dias, acho que nunca tinha notado de verdade a morte até pensar que tinha perdido Carl, naquele parque de diversões cheio de zumbis. Eu não vi a mamãe morrer, porque fechei os olhos quando papai a matou. Também não o vi morrer, estava mais uma vez com os olhos fechados quando Negan destruiu seu crânio até não restar quase nada.

Com Kalel eu sequer estava lá, mas eu não fui capaz de fechar meus olhos quando os zumbis se amontoaram sobre Carl no parque, e mesmo que não tenha sido realmente ele... Eu nunca esqueceria a sensação de não ter onde me esconder, nem sequer em mim mesma, que aquela visão cravou a ferro em minha alma.

A morte é crua, não tem um gosto ou cheiro, e só parece de fato real quando alguém importante pra você morre na sua frente. Puxar o gatilho e tirar um inimigo do caminho é fácil, somos egoístas por natureza.

Porém, eu com certeza não estava pronta para experimentar aquela sensação com um dos meus amigos quando desci daquele caminhão, em meio à escuridão daquela noite tempestuosa, e o vento gelado engoliu meu corpo. Não estava pronta para perder para todo o sempre quem eu fui, sou e serei, e com certeza não estava pronta para aquela guerra, mesmo depois dos longos dois dias e meio dentro da cabine daquele caminhão.

Putrified Love - Carl GrimesOnde histórias criam vida. Descubra agora