Capítulo 33 - Palavras mortas

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Espero que Shira me perdoe por eu mal ser capaz de responder às questões da sua aula de história. Não quero aparentar mal agradecida com a mulher que regressou com os meus estudos após os ensinamentos de etiqueta, só que a concentração se tornou a minha pior inimiga desde que assisti à transmissão. Me despeço da professora com o melhor sorriso que tenho disponível e retorno à biblioteca da Imundice para organizar minhas folhas com anotações. Estou divagando desde a hora que acordei e dispensei os criados pelo restante da noite, o que incrementou a quietude já recorrente na mansão e traz uma ideia de que posso ouvir meus batimentos.

Ao toque da campainha que faz o barulho de um sino acelerado e irritante, eu interrompo os meus movimentos e congelo por um segundo, observando a papelada que estou colhendo. Minhas mãos deslizam pelas folhas e as largam devagar. Tenho a impressão de que, se demorar, a campainha será acionada novamente para me pressionar. Não quero que isso aconteça.

Hoje é uma noite para ser esquecida.

Eu desço pela escadaria central da Imundice, destranco a porta e respiro fundo. Quero desistir. Eu causei tudo isso e estou a passos de distância da consequência. Nem mesmo ceder é uma opção a essa altura. Só quero que isso não dure para sempre.

Calma, vai ficar tudo bem.

Num impulso, puxo a maçaneta com força por conta da ferrugem, o que produz um som agudo e de imediato guia o meu olhar para Dother, posicionado diante de mim, a postura impecável, com a boca em uma linha suave e os olhos de cristal vívidos como nunca, muito mais do que eu gostaria. Embora ainda seja possível ver o estrago da hemorragia nos seus olhos, manchando os cantos de sangue, ele está completamente limpo e seu dólmã branco tem cheiro de roupa nova, os sapatos engraxados brilham sob a luz do lustre no hall de entrada, da mesma forma como os cabelos que só conseguem ser abissalmente escuros como os de Dian.

— Não irá me convidar para entrar? — O seu tom provocativo me pega desprevenida, pois é algo que apenas Dian tem costume de fazer. Há uma garrafa na sua mão, a qual só percebo quando Dother levanta o braço de leve para me mostrar. — Eu trouxe vinho, mas um fraco. Supus que você não bebesse.

— Você não vai apreciar a minha companhia tanto quanto imagina — rebato.

— Há muito o que ser conversado, não se preocupe em apreciar a minha companhia igualmente.

Essa sensação de que estou embaixo da água é terrível. Meus movimentos são lentos e os olhares perigosamente extensos desde o primeiro segundo. Estou longe de me importar com o julgamento dele, só devo ter certeza de que não vou ceder e me diminuir na minha própria residência. Ele não tem esse direito e não irei entregar à força.

Não o convido para entrar, só dou um passo para o lado e seguro a porta com as costas. O momento em que Dother cruza o caminho comigo é uma tortura sem fim, ele me perscruta da maneira como faço a ele, e é uma droga lembrar que é mais alto do que eu. É uma comparação fútil agora, mas não consigo deixar de ver até isso como uma desvantagem. E nesse meio-tempo noto a parte desnuda do seu pescoço, quase na mandíbula, ainda com rastros das escoriações ocasionadas pelos disparos.

A chegada de Dother causa ruído e eco na mansão há pouco em paz. O som do relógio progredindo o ponteiro a cada segundo invade minha mente, comigo rezando para que o tic-tac acelere, no entanto, sei que isso não acontecerá. Tenho que aguentar o sufoco com perfeição, por mais que Dother saiba disso e me permita agoniar em silêncio, sem pressa, como se fosse o nosso único instante no mundo para estarmos por perto uma última vez. Ele ergue sua atenção até o lustre de cobre oxidado no hall de entrada, seguido para os ornamentos padronizados nos batentes das paredes, às cortinas escuras de seda brilhante e por fim aos móveis todos organizados.

O Príncipe do InfortúnioOnde histórias criam vida. Descubra agora