Agora podemos voltar a Veneza por um instante, onde o Conde Morano estava sofrendo com um acúmulo de infortúnios. Logo após sua chegada à cidade, ele foi preso por uma ordem do Senado e, sem saber do que ele era suspeito, foi levado para alguma prisão onde as investigações mais vigorosas de seus amigos não conseguiram rastreá-lo. Quem era o inimigo que havia causado essa calamidade ele não conseguiu adivinhar, embora, de fato, as suas suspeitas caíssem sobre Montoni, e não só com muita probabilidade aparente, mas com justiça.
Na questão da taça envenenada, Montoni havia suspeitado de Morano; mas, não conseguindo encontrar as provas que seriam necessárias para condená-lo culpado com intento, recorreu a outros meios de vingança além dos que poderia esperar de uma condenação. Ele encarregou uma pessoa, em quem ele acreditava que podia confiar, de deixar uma carta de acusação na Denunzie secrete, ou boca dos leões, que ficava numa galeria, no palácio do magistrado, funcionando como um receptáculo para informações anônimas sobre pessoas que pudessem estar descontentes com o Estado. Já que nessas ocasiões o acusador não confronta o acusado, um homem poderia acusar seu inimigo falsamente e conseguir uma vingança injusta sem medo de punição, ou de ser descoberto. O fato de Montoni recorrer a esse meio diabólico de arruinar uma pessoa, que ele suspeitava ter atentado contra a sua vida, não era de maneira alguma surpreendente. Na carta, que ele havia usado como o instrumento de sua vingança, acusava Morano de ter planos contra o Estado, os quais ele tentava provar com toda a simplicidade plausível na qual ele era um mestre; e o Senado, para o qual uma suspeita era quase igual a uma prova na época, prendeu o conde por consequência dessa acusação; e, sem nem ao menos indicá-lo o seu crime, o colocaram em uma das prisões secretas que eram o terror dos venezianos, e nas quais as pessoas, muitas vezes, definhavam, e, às vezes, morriam, sem serem encontradas por seus amigos.
Morano havia trazido sobre si o ressentimento pessoal de muitos membros do Estado; seus hábitos de vida o tornaram desagradável para alguns; sua ambição, a rivalidade audaciosa que ele descobriu em várias ocasiões públicas – para outros; não era de se esperar que a misericórdia suavizasse o rigor de uma lei que seria administrada pelas mãos de seus inimigos.
Enquanto isso, Montoni foi atormentado por perigos de outro tipo. Seu castelo estava sendo atacado por tropas que pareciam estar dispostas a tentar de tudo e aguentar dificuldades, pacientemente, na busca pela vitória. A rigidez da fortaleza, contudo, resistiu ao ataque deles e isto, juntamente com a defesa vigorosa da guarnição e da escassez de provisões nessas montanhas desertas, logo compeliu os assaltantes a suspenderem o ataque.
Quando Udolpho foi deixado, mais uma vez, na posse quieta de Montoni, ele despachou Ugo para a Toscana para buscar Emily, a qual havia sido mandada para um lugar mais seguro do que um castelo que, no momento, estava ameaçado de ser tomado por seus inimigos, em consideração à proteção pessoal dela. Quando a tranquilidade foi restaurada em Udolpho, ele ficou impaciente para garantir que ela estivesse embaixo de seu teto novamente, e encarregou Ugo de ir assistir Bertrand em escoltá-la de volta ao castelo. Forçada a voltar dessa maneira, Emily se despediu da bondosa Maddelina lamentando e, após a estadia de uma quinzena na Toscana, onde ela havia experimentado um intervalo de calmaria, que foi absolutamente necessário para sustentar o seu espírito atormentado há muito tempo, começou a subir os Apeninos mais uma vez, de cujas colinas ela deu um olhar demorado e triste para a bela província que se estendia aos seus pés e para o Mediterrâneo distante, cujas ondas ela tantas vezes desejou que a levassem de volta para a França. A aflição que ela sentia em seu retorno ao lugar de seus sofrimentos anteriores foi, entretanto, suavizada pela suposição de que Valancourt estaria lá, e ela encontrou algum conforto na ideia de estar perto dele, não obstante a consideração de que ele provavelmente era um prisioneiro.
Era meio-dia quando ela saiu do chalé e a tarde havia acabado muito antes dela chegar perto das redondezas de Udolpho. A lua estava aparecendo, mas só brilhava em intervalos, pois a noite estava nublada e, iluminados pela tocha que Ugo carregava, os viajantes seguiram em frente silenciosamente; Emily refletindo sobre a sua situação e Bertrand e Ugo antecipando os confortos de uma garrafa de vinho e uma boa lareira, pois eles já haviam percebido, há algum tempo, a diferença entre o clima quente das planícies da Toscana e do ar cortante dessas regiões mais altas. Enfim, Emily foi despertada de seu devaneio pelo som distante do relógio do castelo, ao qual ela não escutou sem um pouco de temor, enquanto este passava pela brisa. Outra e outra nota se seguiram e desapareceram num murmúrio taciturno entre as montanhas. Para a sua imaginação lúgubre parecia um toque de finados anunciando algum período fatídico para ela.