Agora se torna necessário mencionar algumas circunstâncias, que não podiam ser relatadas em meio aos eventos da partida repentina de Veneza, ou juntamente com aquelas que se sucederam rapidamente à chegada deles no castelo.
Na manhã de sua jornada, o Conde Morano foi para a mansão de Montoni, na hora marcada, para exigir sua noiva. Ao chegar lá ele ficou um tanto surpreso pelo silêncio e pelo ar solitário do pórtico, onde os lacaios de Montoni geralmente ficavam desocupados; mas a surpresa logo mudou para o espanto, e o espanto para a raiva da decepção, quando a porta foi aberta por uma mulher idosa que disse aos criados dele que seu mestre e a família haviam saído de Veneza de manhã cedo, em direção à terra firme. Mal acreditando no que seus criados lhe disseram, ele deixou sua gôndola e correu até o salão para investigar mais a fundo. A idosa, que foi a única pessoa deixada para tomar conta da mansão, continuou a sua história, a qual os cômodos silenciosos e desertos logo o convenceram de que não era fictícia. Então, ele a agarrou com um ar ameaçador, como se pretendesse liberar toda a sua vingança sobre ela, ao mesmo tempo fazendo vinte perguntas em uma única tomada de fôlego e todas estas acompanhadas de gestos tão furiosos que ela ficou destituída da capacidade de respondê-las; então, deixando-a ir de repente, ele andou para cima e para baixo do salão como um louco, amaldiçoando Montoni e a sua própria tolice.
Quando a boa senhora ficou livre, e tinha se recuperado um pouco de seu medo, contou-lhe tudo que sabia sobre a questão, o que era de fato muito pouco, mas o suficiente para que Morano descobrisse que Montoni tinha ido para seu castelo nos Apeninos. Ele seguiu para lá assim que seus criados terminaram os preparativos necessários para a jornada, acompanhado por um amigo e servido por vários de seus criados, determinado a obter Emily, ou a sua vingança completa. Quando sua mente havia se recuperado da primeira efervescência da raiva, e seus pensamentos ficaram menos sombrios, sua consciência lhe mostrou certas circunstâncias que, até certo ponto, explicavam a conduta de Montoni. Mas, como o último poderia ter suspeitado de uma intenção, a qual ele acreditava ser conhecida apenas por ele mesmo, ele não podia nem imaginar. Nesta ocasião, contudo, ele havia sido traído em parte por aquela inteligência compreesiva que pode se dizer que existe entre mentes más, e a qual ensina um homem a julgar o que outro faria nas mesmas circunstâncias. Foi assim com Montoni, que recebeu agora uma prova irrefutável do que ele suspeitava há algum tempo – que as condições de Morano, ao invés de serem abastadas, como ele foi convencido a acreditar, eram muito complicadas. Montoni estava interessado na proposta dele por motivos completamente egoístas, por avareza e por orgulho; o último teria sido satisfeito com uma aliança com um nobre de Veneza, o primeiro com a propriedade de Emily na Gasconha, a qual ele estipulou que seria o preço de sua aprovação e que deveria ser entregue a ele a partir do dia do casamento dela. Nesse meio tempo, ele foi levado a suspeitar das consequências da extravagência desmedida do conde; mas não foram até a noite anterior às núpcias planejadas que ele obteve certas informações com relação às condições atribuladas dele. Ele não hesitou em inferir que Morano pretendia fraudá-lo quanto à propriedade de Emily; e essa suposição foi confirmada, e com razões aparentes, pela conduta subsequente do conde, que, após ter marcado encontrá-lo naquela noite com o objetivo de assinar o documento que lhe garantiria sua recompensa, falhou em seu compromisso. De fato, tal circunstância em um homem com o caráter alegre e descuidado de Morano, e num momento quando sua mente estava ocupada com o alvoroço da preparação para as suas núpcias, poderia ser atribuída a uma causa menos decisiva do que a malícia; mas Montoni não hesitou por um instante em interpretá-la de sua própria forma e, após esperar, em vão, pela chegada do conde, por várias horas, ele ordenou a seus criados que estivessem prontos para partir a qualquer momento. Ao correr para Udolpho ele pretendia tirar Emily do alcance de Morano, além de pôr fim à questão sem se submeter a altercações inúteis; e, se o conde fosse realmente honrável, ele sem dúvida seguiria Emily e assinaria os papéis em questão. Se isso fosse feito, Montoni tinha tão pouca consideração pelo bem-estar de Emily que não teria escrúpulos em sacrificá-la para um homem com uma fortuna arruinada, já que através disto ele próprio enriqueceria; e ele evitou mencionar o motivo da viagem repentina, a fim de que a esperança que ela pudesse criar não a tornasse ainda mais indisciplinável quando a submissão era requerida.