▓ CAPÍTULO UM ▓

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︻╦╤─  O ponto de partida.


Ouço a porta do meu quarto ser fechada. Agora, sozinha, finalmente posso chorar em segurança até o amanhecer. É assim que tenho passado as últimas semanas. Quando estou na escola, não choro. Pelos corredores ou na aula, finjo que nada está acontecendo e que sou normal como todos os outros ali. Sorrio, estudo, treino atletismo... Em casa, fico alerta na esperança de que não ocorra novamente, mas infelizmente, só piora.

Durante a noite, no meu quarto, quando a minha mãe já está dormindo, o meu padrasto se ajoelha ao lado da minha cama. A cada nova oportunidade, ele avança mais os seus dedos por baixo da minha roupa. Como se trouxesse em suas mãos uma descarga elétrica, seu toque me causa ondas de choque, me deixando petrificada de medo. Não consigo entender porque simplesmente eu paraliso ou me sinto tão errada.

Encarando o meu relógio transparente comprado com o chinês que sempre está na parada de ônibus, observo o ponteiro neon avançar a cada minuto para um novo dia. Olhos os poucos móveis de madeira à minha volta, como testemunhas indiferentes, e me pergunto o quanto da minha noite foi real ou se teria sido um terrível pesadelo. Fico confusa sobre se essas coisas estão mesmo acontecendo comigo.

O quarto está iluminado pelo sol da manhã que entra através da janela. Eu me levanto da cama e corro para o espelho suspenso na parede por um prego feito um quadro. Tiro a roupa buscando no reflexo do meu corpo nu, provas de uma mão nojenta me apalpando, mas não há nada. Visto a farda escolar sem tomar banho. Há um tempo que evito usar o banheiro, porque o meu padrasto se esgueira pelas frestas dos cobogós de alvenaria para me espiar, enquanto toca em si mesmo.

Certo dia, quando cheguei mais cedo da escola, acabei encontrando ele com o short arriado sentado na minha cama. Sua mão segurava o próprio órgão sexual numa cena repulsiva. Corri desesperada para a rua, só entrei em casa depois que vi minha mãe chegar com Dete, a mulher que mora ao lado.

A minha mãe sempre está na companhia da vizinha ao sair de casa, e quando ela volta, o meu padrasto gruda do seu lado. Isso me deixa sem oportunidade de conversar para explicar o que vem acontecendo. Eu sei que esse é o motivo dele estar sempre com ela, mas a faz pensar que é amor ou coisa do tipo.

Depois de estudar um melhor momento, encontro um jeito de dizer tudo a minha mãe sem a presença do meu padrasto por perto. Vou fingir que saí para a escola e na hora que ele for para o trabalho, volto e conto tudo o que estou passando. Não vejo a hora de irmos embora da casa deste homem.

Abro a porta e corto a pequena cozinha, abarrotada de armários simples e uma mesa redonda com quatro lugares ocupando a maior parte do espaço. No fundo, há uma compacta pia de metal na bancada de concreto, ao lado, uma antiga geladeira branca encostada na parede. O fogão de quatro bocas, espremido no canto, tem uma panela que ferve o café, exalando um cheiro que faz minha barriga roncar.

Caminho a passos rápidos para a saída, tentando evitar que meu padrasto tenha tempo de me dar bom dia com seus abraços asquerosos e sua voz sebosa. Para o meu azar, ele atravessa o meu caminho e me agarra. O seu abraço forçado traz o perfume do desodorante com fedor de barata que está usando, o que me dá ânsia de vômito.

— Tem gente precisando de um banho. com cheiro de azeda, bonequinha — diz Sandoval, enquanto eu seguro a enorme vontade de vomitar presa na minha garganta, fazendo os meus olhos lacrimejarem.

Além do nojo que vem das minhas entranhas, sinto um profundo ódio de ter que olhar na cara dele. Aquele tipo de ódio que me faria matar Sandoval em qualquer oportunidade que eu tivesse. Perdi a conta de quantas vezes sonhei ou fantasiei em ver esse sorriso doente sumir da sua cara imunda. O pior é que ele sente isso no meu olhar e parece ficar satisfeito por eu não conseguir fazer nada mais do que me corroer.

A VIDA NO MORRO COMEÇA CEDOOnde histórias criam vida. Descubra agora