▓ CAPÍTULO DEZ ▓

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Depois de passar o dia sem receber um mísero sinal de Otávio, saio do banheiro pensando no que pretendo usar para o encontro com Dom. Parece que foi em outra vida a minha aventura no ginásio da Escola Estadual Tinoco Rios. As lembranças do que aconteceu com Coalhada nunca me abandonaram, tão pouco as memórias doces que vivi no almoxarifado.

Nas araras do closet, empurro as roupas formais, roupas de festa e por fim as comuns. Nenhuma delas parece adequada ao nosso encontro, o que me faz questionar se não seria exatamente sobre isso. Sempre fomos pessoas de mundos que não se encaixam, ou fui eu que acabei esquecendo de como ser alguém do morro e virei uma cadelinha de madame para servir a Otávio? O fato é que não estou conseguindo lidar com a minha realidade atual e nem me encaixo no mundo do crime.

Começo a atirar minhas roupas no chão, em busca de peças mais despojadas, algo que não me faça parecer a Dalena parlamentar ou a Dalena acompanhante de luxo. Desconfio que, no fundo, estou procurando algo que faça Dom lembrar da garota que ele encontrou fugindo de casa, mas suspeito que eu me perdi dela.

Depois de criar uma montanha de roupas no chão, acabo optando por uma calça jeans justa, um top preto de tiras trançadas, com uma regata branca bem cavada por cima. Calço um tênis básico, capricho no batom rosa romance, finalizando com o perfume que com certeza traduz a minha personalidade. Entre notas de mel e patchouli, Scandal aromatiza a minha pele.

Paro em frente ao espelho e encaro meus olhos de gato na cor cinza, procurando a garota de quatorze anos que não está mais aqui. Envolvo o meu maxilar pequeno entre os dedos e franzo a minha testa arredondada ao comprimir meus lábios polpudos. No meu reflexo, vejo uma jovem mulher transmitindo a aura de alguém que talvez tenha fugido não só de casa, mas de si mesmo.

Otávio me bagunçou por dentro. Até há alguns meses, eu ainda conseguia me ver. Mas agora, a cada vez que me olho no espelho, sinto como se tivesse perdido uma essência de mim que não consigo recuperar. Parece que cada traço do meu rosto carrega a marca de uma mulher perdida, e não sei como me livrar disso.

Afasto dos meus pensamentos minha autoanálise.

Respiro fundo, tentando controlar o nervosismo para encontrar Dom. Depois de me dar uma injeção de confiança, jogo os meus cabelos longos para o lado e desço até a garagem. Entro no carro, sem hesitar, sigo rumo à Ponta do Golfinho. A cada quilômetro percorrido, a empolgação cresce em mim por saber que conversaremos pessoalmente depois de tanto tempo.

A rua escolhida para o encontro é uma localização onde um dia grandes restaurantes frequentados pela alta sociedade de Belo Rio reinaram. Hoje, parece um lugar cansado de noites agitadas, com alguns bares pouco movimentados e restaurantes esquecidos. Mesmo assim, mantém seu charme, além de ter uma das melhores vistas da praia, já que fica em cima de uma grande pedra anexa à orla.

A formação rochosa avança para o mar, sendo cercada pela água salgada e tornando-se um grande mirante. Ao final da rua sem saída, é possível ter uma vista panorâmica daquela parte da cidade, como também dos golfinhos. É uma pena que à noite não seja possível ver os animais marinhos nadando por perto.

Os pneus rolam pelos paralelepípedos até eu estacionar no ponto mais deserto da rua mal iluminada, onde só há um senhor guardando os carros por conta própria, à espera de uns trocados. O local serve mais de estacionamento do que qualquer outra coisa, cercado por estabelecimentos falidos com portas fechadas.

Ao descer do carro, caminho mais perto da vista para a praia, sem temer ser uma parte menos movimentada da rua. Em poucos minutos fora do carro, eu me arrependo de ter escolhido uma blusa tão cavada, já que recebo inúmeras pancadas de vento frio. Aperto os braços sobre o peito tentando me aquecer.

A VIDA NO MORRO COMEÇA CEDOOnde histórias criam vida. Descubra agora