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Quando Miguel abriu os olhos e olhou na direção das portas de vidro que levavam à varanda de seu quarto, viu que estava escuro lá fora. No quarto dele, só a suave luz amarelada do abajur em sua cabeceira iluminava o ambiente. Na mesinha estavam um copo d'água e duas cápsulas de dorflex. A porta do quarto estava entreaberta, o hall escuro. Ele ouvia vozes, embora um pouco abafadas, vindo da sala de estar lá embaixo.

O corpo dele doía todo, mas a dor nem se comparava ao medo e ao desespero. Ainda sim, ele colocou as pílulas na boca e bebeu toda a água, só então percebendo o quão desidratado ele estava.

Miguel se arrastou para fora da cama e desceu as escadas lentamente, segurando firme no corrimão de madeira, seus olhos se ajustando às luzes acesas. Quando ele chegou na sala, Mia estava deitada no sofá, com as costas e cabeça apoiadas em várias almofadas. Ela tinha Lila em seus braços, as duas imersas lendo o que ele reconheceu ser 'Olivia Não Quer Ser Princesa', o livro predileto de Lila no momento. Ele parou no pé da escada, encostando-se à parede para ouvir aquela voz levemente rouca. Mia fazia uma voz diferente para cada personagem e sua entonação mudava destacando cada emoção da porquinha protagonista. Lila estava totalmente absorvida na história, como se aquela fosse sua primeira vez a ouvindo.

Vendo elas duas ali era como a concretização de um sonho antigo do qual há muito tempo Miguel havia desistido. O sonho da família que poderia-ter-sido se ele não tivesse sido tão imaturo e inseguro; se Lila fosse filha deles de sangue de modo que ninguém jamais pudesse levá-la embora.

Ele esperou a história terminar e observou Mia acariciar os cabelos de sua filha, até que os olhinhos de Lila se fecharam, adormecendo com a cabeça apoiada no braço de Mia.

"São que horas?" Ele perguntou baixinho, assustando Mia de leve com sua presença.

"Umas nove e pouca... Você dormiu bastante." Ela respondeu aos sussurros, os dedos ainda fazendo cafuné na garotinha.

"Nem sei como te agradecer..." Miguel respirou fundo, se esforçando para não cair no choro de novo, olhando fixamente para seus pés descalços contra o assoalho, "ainda mais que nós não somos mais nada um para o outro."

Mia não disse nada, mas seus dedos pararam de mexer nos cabelos de Lila. "Leva ela pra cama e desce de novo—tem algo que eu gostaria de conversar com você."

Miguel franziu o cenho, confuso. Ainda assim ele se aproximou do sofá e com toda a expertise de um pai que incontáveis vezes havia carregado a filha no colo sem acordar, tomou Lila delicadamente em seus braços e a carregou para cima. Ele percebeu que Lila havia tomado banho. Ela estava cheirosa e até com talquinho em volta do pescoço, os cabelos levemente úmidos penteados. Além disso, ela vestia um pijama diferente com estampa de gatinhos.

Miguel a deitou na cama, colocou seu elefantinho entre seus braços e a cobriu com o edredom. Ele beijou a bochechinha da filha aspirando aquele cheirinho de colônia de alfazema. Miguel sussurrou uma benção do anjinho da guarda e saiu na ponta dos pés, deixando a porta entreaberta para que a luz do corredor iluminasse o suficiente para ela não sentir medo.

Lila não teria colônia de alfazema morando num orfanato e também não teria uma porta entreaberta com luz entrando para que não sentisse medo. Miguel não queria nunca que sua filha sentisse medo. Nunca. A função primordial de um pai era proteger sua cria.

Era nisso que ele pensava ao descer as escadas e encontrar Mia lá embaixo com duas canecas de porcelana fumegando, um cheiro de chá de camomila no ar. Por um momento Miguel se lembrou de dona Rosário, a avó da Lila. Ela sempre fazia chá de camomila nas noites de insônia.

"Vem, senta aqui comigo," Mia chamou, batendo de leve no espaço ao seu lado no sofá.

Miguel afundou no sofá e ela colocou a caneca de chá quente em suas mãos.

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