5 - Becky

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—  Por isso você deveria ser sincera comigo.

Observo enquanto Freen continua em silêncio, deixando morrer a frase dita por mim quase um minuto atrás. Seus olhos se movem pelo espaço, como se pulassem de um ponto ao outro entre as pilhas de louça e itens jogados no chão. Não posso deixar de notar o quanto esse caos é preocupante, uma mensagem clara de que algo não vai bem com a pessoa mais organizada que eu já conheci.

Um som chiado é o único elemento audível na casa. Ele parece escapar por alguma porta ao fim do corredor escuro que leva aos cômodos desconhecidos aos meus olhos. Soa como um trem a vapor ou alguém ofegando, e parece combinar com a tensão que cresce entre mim e o silêncio da garota à minha frente.

Ela parece levar certo tempo para perceber o som. Consigo ver o exato momento em que isso acontece, porque Freen pisca duas vezes e empalidece. Seu lábio inferior treme quando diz:

— Eu já volto.

Suspiro, mais uma vez ignorada na resposta. Mas agora entendo que parece ser por um motivo importante, então apenas deixo que meus olhos a acompanhem até ela entrar na porta de onde o som se origina e se perder na escuridão. Se eu não a tivesse visto antes, apostaria que esta casa está abandonada.

A voz dela se mistura ao som pesado. Parece estar conversando com alguém, embora eu não consiga ouvir as respostas da outra pessoa. Tento não prestar atenção e foco em lavar a pilha enorme de louça que se estende por todo balcão. Não sei exatamente por que estou fazendo isso, mas não consigo parar, e de alguma forma parece que é a coisa certa a fazer.

Abro o lixo da cozinha para jogar restos de arroz com aparência de cem anos, mas algo chama minha atenção antes que eu libere o conteúdo: um pedaço de papel amassado ao lado da lixeira. Alguém errou a mira quando foi descartá-lo, ou só não se importou.

Me agacho para pegar o objeto e jogá-lo no local correto. A textura é endurecida como papel de escola, e não um guardanapo que você usa ao fim de uma refeição. Marcas de caneta mostram que estou certa, e isso aguça minha curiosidade.

Minha mão paira na frente da lixeira. Hesito por um instante: a ideia de ver o que está escrito antes de descartá-lo é tentadora, contudo me recrimino por pensar em invadir a privacidade de Freen. Mas talvez seja apenas uma lista de compras, e se esse for o caso, não há problema em conferir qual a marca de chá com leite ela anda tomando.

— Becky!

A aparição de uma Freen descabelada me impossibilita de esboçar qualquer reação. Num ato reflexo, amasso ainda mais o papel e o enfio na bolsa de Mon aberta em meu ombro, assustada com a possibilidade de ser flagrada. Um xingamento mental surge automaticamente quando me dou conta de que devia tê-lo jogado fora.

Mas ela parece não notar, apenas corre até mim e agarra meus braços com força. Seus olhos estão imensos e profundos, aparentam úmidos e contrastam com as bochechas vermelhas. A boca está contraída em uma linha apertada, uma tentativa de conter o tremor em seu lábio inferior.

O mesmo tremor de suas mãos que me tocam em desespero.

— Becky, me leve para o hospital agora! — ela suplica. — Minha mãe não está bem!

A frase faz com que todos meus pensamentos anteriores cessem. Uma onda de adrenalina e surpresa me atinge, preciso fazer força para que minhas pernas não cedam.

— Onde ela está? — pergunto. As mãos de Freen agora estão me puxando, me guiando para dentro do corredor escuro com passos apressados. — O que ela tem?

— Que merda, eu devia ter levado logo... — ela murmura, alheia às minhas perguntas. — Eu não podia...

Ela me puxa para dentro de um quarto tão escuro quanto o corredor e sou tomada por um cheiro forte de remédios. O primeiro detalhe que consigo distinguir na penumbra é uma máquina respiratória instalada ao lado direito de uma cama, onde há uma mulher esquálida deitada sobre diversos travesseiros e cobertas. Está quase condensada a eles, de forma que não consigo identificar onde ela começa e termina. Parece estar nessa posição há muito tempo, e respira com dificuldade.

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