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Enid encarava com expectativa as cópias impressas do currículo que fizera na noite anterior com ajuda de alguns tutoriais. Além disso, pensava em qual local iria primeiro para entregá-las: Weathervane, uma cafeteria aconchegante e não muito distante da sua casa, ou Hawte Kewture, uma loja de vestidos no centro no qual ela poderia citar as peças por ordem alfabética. Eram, de longe, seus ambientes favoritos na pequena Jericho. Talvez a mudança repentina de rotina fosse menos desconfortável se estivesse em um estabelecimento conhecido e regularmente frequentado, ela imaginava.

De qualquer forma, caso não desse certo por lá, opções não faltavam, visto que conhecia o lugar em que morava —assim como outros habitantes— com a palma da mão. Sempre fora muito gentil e comunicativa, raramente perdia a paciência. No entanto, o frio na barriga, a sensação de ter as mãos trêmulas e o coração batendo rapidamente, ansioso, eram inegáveis. Afinal, estaria prestes a assumir um conjunto completamente novo de responsabilidades e sabia disso.

Apesar de cuidar dos seus irmãos desde que se entende por gente, não era remunerada por isso. Às vezes ganhava alguma quantia de seu pai, para comprar algo que queira, mas nada contínuo e sem objetivo definido. Como exatamente administraria o seu dinheiro? Também, mesmo que tivesse de ser pontual com os horários do colégio, nunca teve que se preocupar em percorrer distâncias muito longas entre um compromisso indispensável e outro tanto quanto. Céus, isso mudaria algo drasticamente? Sua nova fase seria tão produtiva quando ela esperava?

E talvez o questionamento mais importante: Conseguiria continuar cuidando de seus irmãos do mesmo jeito? Ela daria conta?

Enid balançou a cabeça, jogando os pensamentos de lado antes que surtasse, e respirou fundo. Logo que pisou na calçada, viu a senhora Mallet, sua vizinha, quase cair por ter tropeçado na coleira de Cherry, a cadela SRD que havia resgatado no ano passado. A Sinclair prontamente a segurou, estavam fisicamente próximas uma da outra, mas não a tempo o suficiente para que a idosa não machucasse o joelho.

— A senhora está bem? —Perguntou preocupada enquanto analisava o pequeno corte— Se precisar de uns curativos eu posso buscar em casa e ajudar a fazer!

— Estou bem, crianças. Obrigada —Disse tranquilamente, com seu forte sotaque francês, e deu um sorriso um tanto forçado por conta da dor— Não se preocupe com o arranhão, logo vai cicatrizar —Confortou e a outra concordou com a cabeça, apesar de estar um tanto receosa sobre a veracidade do que fora dito.

— Oi, Cherry! —Exclamou enquanto acariciava a cadela, que foi com o rabo abanando cumprimentá-la.

— Olha, eu ainda me surpreendo por ela gostar tanto de você e ter colocado os últimos três passeadores literalmente pra correr, sendo o nível de proximidade quase o mesmo.

— Como assim? Ela é tão doce!

— Mas não gosta de caminhar com qualquer um. Por mais que eu pagasse bem, eles acabavam desistindo depois de uma semana, no máximo. E, sabe, na minha idade é bem difícil fazer isso, como você pode perceber, então estou novamente procurando alguém.

Talvez soasse errado, mas aí Enid viu uma oportunidade.

— Eu poderia tentar? Não sou especialista como as pessoas que a senhora contratou provavelmente eram mas tenho bastante conhecimento do local, paciência e ela já gosta de mim.

— Faria isso? —Perguntou com expectativa e Enid prontamente concordou— Quanta gentileza! Agradeço! Vai estar me salvando pela segunda vez somente hoje.

Não imagine que é errado ter uma intenção, veja de outro ângulo, você precisa, Enid repetia em pensamento.

— Não há de que!

— Se conseguir, veremos os detalhes na minha casa. Pode ser? Você quer essa responsabilidade?

— Claro! Vai ser o maior prazer. Logo estaremos de volta.

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Wednesday estava lendo em uma das poltronas escuras da sala de estar quando seus pais chegaram da rua, conversando e rindo alto, coisa que ela não via acontecer há muito tempo.

— Querida! Que bom te ver aqui embaixo pra algo que não seja uma refeição —Gomez, seu pai, disse surpreso e feliz.

— Sobre o que conversavam? —Questionou curiosa, sem rodeios.

Os adultos se entreolharam, aflitos. Esperavam ter essa conversa de um jeito mais sutil e agora não poderiam adiar sem que ela soubesse, ou ao menos desconfiasse, o que diminuía drasticamente as chances de êxito.

— Vai ter um festival voltado pro público adolescente na praça principal de Jericho. Estávamos pensando se você não gostaria de ir. Pelo menos ficar um pouco, dar uma olhada, respirar ar fresco —Sugeriu cuidadosamente.

Wednesday ficou desconfortável somente por cogitar mas, quando encarou os pais, repensou em negar de imediato. Eles esperavam a resposta com esperança nítida em suas fisionomias, assim como todas as outras vezes que tentaram reintroduzi-la em meios sociais. Estavam se esforçando. Aquilo significava alguma coisa, querendo ou não.

— O que vai ter lá, exatamente?

— Músicas em alta como ambientação, diversas barracas de comida, jogos e até uma roda gigante! Estão todos muito animados.

Os últimos meses tinham sido difíceis, ela reconhecia, então o que custaria tentar? Não precisaria ficar muito, de qualquer forma. Apenas uma aparição faria seus pais felizes. Ela poderia fazer isso. Esperava que sim, pelo menos.

— Pode ser bom —Falou tentando usar o mais tom imparcial que conseguia, porém um brilho iluminou o olhar dos mais velhos, que logo se sentaram perto dela.

— E como foi a aula hoje? Quer nos contar? —Morticia, sua mãe, puxou assunto.

— Do mesmo jeito. A senhora Thornhill chegou, explicou teorias e passou exercícios para eu fazer —Explicou com seu foco novamente voltado para as páginas de Lady Killers.

— Não anda com dificuldade? Quero dizer, poucos professores para lecionar várias matérias deve fazer o ensino ser mais cansativo ou te deixar com uma rotina um tanto sobrecarregada, mas nada que te afete a longo prazo, certo?

— Sem querer ser exibida, sigo aprendendo tanto quanto antes. Mais do que facilidade quando o assunto é pesquisa e concentração, eu tenho muito tempo para estudar o que não entendo no momento em que é explicado oralmente.

Eles concordaram com a cabeça, um tanto satisfeitos.

— Achamos uns álbuns hoje cedo, o que acha de olharmos juntos?

Wednesday fechou, com rapidez e precisão, o livro que lia, levantou-se da poltrona e subiu para o seu quarto, sem dar qualquer oportunidade de reverterem a situação. Os adultos suspiraram. De qualquer forma, tiveram um avanço. Um pequeno diálogo sobre um assunto considerado banal pela maioria. Mas não poderiam deixar de ficar com um sentimento amargo no peito pela rejeição.

Era um costume: Tiravam pelo menos um dia de todo final de semana para sentar no sofá e relembrar momentos que viveram em família. Aniversários, casamento dos pais, gravidezes, viagens, primeiros eventos —como aprender a andar de bicicleta e a queda do primeiro dente provisório. Contavam histórias por horas enquanto bebiam chocolate quente com pão caseiro, no frio, ou sorvete, no calor.

Até que a filha não conseguia mais olhar para as fotos, ou falar sobre as lembranças, e o filho sequer estava ali para tentar.

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Olá, seres.

O que acharam?

Caminhar • WenclairOnde histórias criam vida. Descubra agora