Enid ainda estava em êxtase com o que fora decidido com a senhora Mallet no dia anterior.
Logo que voltou de um passeio tranquilo com Cherry, a idosa abriu um sorriso genuíno e a recebeu quase como se fossem parentes. Quando entraram, elogiou tanto a garota que por um momento ela sentiu-se tímida. No fim, a mais velha insistiu que pagaria pelo menos trinta e cinco dólares por dia em que ela passeasse com sua cadela. Apenas uma condição: Ao menos meia hora de caminhada, por onde ela achasse melhor.
Claro que Enid aceitou, depois de muito agradecer. E inclusive começaria hoje mesmo, no dia seguinte.
— Boa tarde, senhora Mallet! —Desejou assim que a porta de madeira fora aberta.
— Boa tarde, criança! —Devolveu enquanto entregava a guia de Cherry, visto que já tinha sido avisada sobre o passeio então havia a aprontado— Até mais tarde.
Ela assentiu e voltou à calçada acompanhada, pensando em qual seria seu caminho padrão daqui em diante, não querendo ser muito indecisa nos próximos dias. Com o teste que fizera anteriormente, tinha percebido que Cherry não gostava muito de atravessar a rua. Talvez fosse pelos carros ou sua falta de paciência, mas Enid não queria arriscar então decidiu que o faria o mínimo de vezes possível.
Quando chegaram na esquina, Enid virou à esquerda. Na próxima, fez o mesmo. Somente na terceira esquina, ela atravessou e continuou.
Em dado momento, seguindo adiante, a de olhos azuis avistou uma casa grande, com estética antiga, tons majoritariamente escuros e janelas espelhadas notáveis. Tinha memórias —não muito claras, diga-se de passagem— dela porque a família já estava ali antes mesmo dos seus pais se mudarem, e inclusive foram de grande ajuda na adaptação. No entanto, com o passar do tempo, os Sinclair e os moradores —cujo sobrenome era Addams— perderam contato. Enid ainda era pequena quando aconteceu, justificando as lembranças turvas, e a consciência de seus irmãos veio pouco depois disso.
De qualquer forma, sentia algo bom ali, mas passaria reto. Claro, se Cherry não tivesse parado para fazer suas necessidades.
No segundo andar da casa, Wednesday escrevia sentada na mesa, que ficava perto da janela do seu quarto. Percebeu uma movimentação incomum na rua normalmente pacata pela visão periférica e, tentada pela curiosidade, foi sentar-se no estofado. Ao notar a presença de Enid, ficou analisando-a. Parecia mais alta, as pontas do cabelo loiro eram coloridas por tons de rosa, roxo e azul, roupas totalmente diferentes das suas tanto em questão de paleta quanto de estilo.
Enid sentiu-se observada e, por intuição, olhou na a direção da janela. Em seguida, julgou-se. Não conseguia ver nada dentro então era besteira tentar. Mas com isso Wednesday descobriu que suas íris eram azuis e ficou ainda mais... interessada.
A garota saiu do transe no susto, por ouvir batidas na porta do seu quarto.
— Entre —Pediu enquanto pegava um livro qualquer da sua estante, apenas para disfarçar.
— O Eugene ligou, querida —Morticia contou.
Wednesday respirou fundo. Por mais que tivesse deixado explícito que se afastaria de todos, o amigo não desistira e constantemente pedia notícias.
— O que ele queria desta vez?
— Perguntar como você está e quando volta. Nenhuma novidade.
— Então por que está me avisando agora?
Só então a matriarca entrou completamente no cômodo. Aproveitou e sentou-se na cama dela, acariciando os lençóis recém-trocados.
— Porque eu acho que deveria pensar sobre. Não pode se esconder aqui pra sempre.
— Estou tentando mas... não é fácil. Sair, interagir, lidar. Não mais. Já conversamos sobre.
— Eu entendo, não quero te pressionar, mas já que pensou sobre o festival, também poderia começar a cogitar voltar pra escola presencial, não acha?
Não, pensou de imediato. Estava surtando por um dia de contato com desconhecidos, imagina voltar a uma rotina em um lugar em que praticamente todas as pessoas sabiam do que aconteceu? E pior, onde os causadores talvez ainda estariam e provavelmente tentariam confortá-la falando sobre ele ou como ele estava pouco antes de não ser nada além de um corpo vazio.
— Preciso focar em uma coisa de cada vez se quiser que realmente dê certo.
Morticia assentiu, relativamente concordando com a resposta.
— Eu contei pra ele sobre você ir ao festival.
— Por quê? —Questionou um tanto indignada. Eugene era um garoto de esperanças elevadas, aquilo era quase como se ela estivesse levantando uma placa de LED colorido dizendo 'Finalmente estou bem'.
— Ele merecia alguma boa notícia depois de tanta insistência. E também, ele pode te acompanhar! Quem sabe ter um amigo próximo te ajude.
— Está o iludindo, sabe disso.
— Só quero te incentivar, querida.
— Então pare de tramar pelas minhas costas e espere o tempo e a terapia curarem as minhas feridas internas. É só o que eu peço.
Ela abriu a boca para argumentar mas desistiu. A filha tinha o direito de exigir espaço, assim como ela preferia estar em família para lidar com as próprias dores. Então, levantou-se e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
Wednesday guardou o livro e deitou na cama, abraçando um de seus travesseiros enquanto seu coração batia forte e dolorosamente.
Toda vez que algo de ruim acontecia ou uma situação a incomodava, seu irmão a abraçava, consolava com algumas das palavras mais clichês que ela já ouvira —mas na hora a ajudava a se sentir melhor e, no final, algo acabava fazendo sentido— e depois faziam uma atividade juntos —seja uma pintura, um lanche, uma ida ao quintal— até ele sentir que a irmã mais velha estava distraída o suficiente.
Agora ela não tinha mais isso.
Não sentia os abraços repentinos, que às vezes vinham antes mesmo dela levantar-se da cama pela manhã; Não ouvia os pequenos passos rápidos pela casa —já que os pais pediam que ele não corresse nos corredores— ou os gritos das lutas de super-heróis que aconteciam por lá; Não sorria com as caretas estranhas, as piadas bobas e de humor duvidoso ou de qualquer coisa; Não poderia ler os quadrinhos, repletos de desenhos e indicadores para fácil entendimento, e se surpreender com a criatividade do pequeno autor.
Porque não tinha mais ele. E céus, como Wednesday precisava disso agora.
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Olá, seres.
O que acharam?

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Caminhar • Wenclair
FanfictionEnid precisava arrumar dinheiro. E rápido. Então, começou a levar a cadela da sua vizinha para passear depois da aula. Todas as vezes ela passava na frente da casa de Wednesday, que por sua vez ficava a observando pela janela. Um dia, ela decidiu se...