vinte e nove - nosso anjo

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Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo tempo do mundo
Todos os dias, antes de dormir
Lembro e esqueço como foi o dia
Sempre em frente
Não temos tempo a perder
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
Castanhos
Então me abraça forte
Me diz mais uma vez que já estamos
Distantes de tudo
Temos nosso próprio tempo
Somos tão jovens
Tempo Perdido by Legião Urbana

Já passava das 22 horas quando bati na porta do apartamento de Shivani. Minhas mãos tremiam e eu tinha uma impressão muito ruim que eu não fazia ideia da onde vinha.

Ela abriu a porta poucos minutos depois. Linda como sempre, mas abatida. Parecia ter chorado recentemente. E tinha um ar desleixado que não era comum em sua imagem, mesmo em casa. O cabelo estava preso em um coque mal feito e ela estava vestida apenas com uma camiseta enorme, que em um passado recente era minha.

— Entra! — ela disse, sua voz estava insegura.

Honestamente, não me lembrava de que em algum momento Shivani estivesse tão fria em relação à mim. Como se não houvesse nenhum sentimento. Nem ódio, nem paixão, nem desejo... Apenas um nada. Uma indiferença do caralho que me fazia temer pelo nós que tanto desejo.

Nos sentamos no sofá, frente a frente, de forma casual. Aquele pequeno momento me lembrou de nossas primeiras noites dividindo uma casa... Eu estava com uma puta saudade dessa época.

— Eu espero que não me odeie depois do que tenho pra te dizer... — ela começou e meu coração acelerou no mesmo momento.

— Apenas reduza o meu sofrimento e seja direta, Shiv. — pedi, sentindo uma dor terrível de antecipação que eu não me lembrava de ter sentido qualquer momento antes daquele.

— Eu só queria dizer que, antes de tudo, eu... — ela se interrompeu, lágrimas caíram em seu rosto e ela as limpou com certa força — Eu gosto pra caralho de você. Acho que nunca fui tão feliz quanto quando a gente ficou junto. Mesmo sem rótulos, o que a gente construiu foi o melhor relacionamento que eu poderia desejar na minha vida. Quando eu estava totalmente quebrada e ninguém percebeu, você cuidou de mim e mostrou que por mais difícil que eu possa ser, eu também mereço vivenciar coisas boas. Acho que acima de tudo, você acreditou em mim quando eu estava literalmente sozinha no mundo e me mostrou que nem sempre um relacionamento tem que ter rótulos para ser a melhor coisa das nossas vidas. — antes que eu pudesse controlar, também já chorava — Alguns dias atrás, eu quase morri, Bailey. Eu estive muito próxima da morte. E enquanto eu estava fodidamente perdendo a consciência eu tive um pequeno segundo de lucidez e tentei falar com você, mas depois que minha saúde voltou ao normal, perdi a coragem de tentar outra vez.

— O que aconteceu com você? Cê tá doente, Paliwal? — perguntei, um aperto estranho no estômago.

— Não. Eu estava grávida, Bailey. De um bebê. Um bebê nosso. — quando assimilei suas palavras, perdi completamente a noção, meus olhos arderam quando finalmente entendi o que ela tanto temia me dizer — Eu o perdi... Era uma menininha. Mas a droga do meu corpo sequer serviu para prosseguir com essa gravidez. Nossa filhinha morreu e quase me levou junto no processo. Eu sinto muito... — ela estava chorando tanto quanto eu.

O mundo parou. Completamente. A única coisa que eu consegui distinguir era o barulho da minha bagunça mental. Entendendo que eu nunca me senti tão triste e impotente quanto agora. Eu sou a porra de um dos melhores médicos do Brasil, Shivani também... E por mais dedicados que fôssemos, ainda não conseguiríamos mudar isso. Perdemos nosso bebê. Simplesmente porque aconteceu.

Uma parte de nós dois... Juntos. Uma menininha. Talvez ela tivesse os cabelos de Shivani. Talvez ela fosse ter um gênio terrível como o nosso. Talvez ela fosse tão brava quanto Paliwal. Talvez fosse tantas coisas... Acho que o que mais doeu foi a percepção de que nunca existiria. Por um segundo eu fui feliz em me imaginar pai. Pai de uma filha minha e de Shivani. E isso foi tirado de mim.

— Eu não sei o que dizer... — fui honesto, tentando me acalmar — Por que só me contou agora?

— Eu não tive coragem de falar por telefone. Estava me sentindo tão culpada e não queria nem imaginar como seria se você me culpasse também. Imagina como eu me senti... Completamente sozinha em um país diferente, sem conhecer quase ninguém. Eu sofri pra caralho e não queria sofrer mais com a ideia de que você iria me culpar. — Paliwal nunca havia sido tão honesta e apesar das circunstâncias, eu senti que ela finalmente tinha aceitado os sentimentos por mim.

— Não é culpa sua. Não é culpa de ninguém, Shiv. Você é forte pra caralho por ter passado por isso sozinha. Só me sinto mal contigo por não estar aqui por você. Não era uma tristeza só sua. — fui honesto da mesma forma que ela — Eu gosto tanto de você e eu ficaria tão feliz se a gente tivesse a nossa filha. Mas se não aconteceu, tem um propósito por trás disso. A gente tem uma anjinha agora. Eu tô triste pra caralho com tudo, mas quero que se lembre que não importa o que aconteça ou se a gente tá junto ou não, eu sempre vou estar aqui pra você. Em qualquer situação, conta comigo. Antes de tudo que aconteceu entre nós, construímos uma amizade, se precisar desse amigo pra qualquer situação, ele estará aqui pra ti.

— Muito obrigada mesmo, Bailey! Sei o quanto dói perceber tudo que poderia ter sido. A nossa filhinha. Nossa anjinha! Mas a vida é uma constante de tristezas e perdas e no fundo a gente é forte. Sempre vou sentir esse vazio aqui comigo, mas a nossa bebê também me dá uma força de saber que preciso continuar, não importa o que aconteça, pois a vida é curta demais para desistir dos sonhos. Obrigada por me entender, não julgar e não criticar o fato de eu não te contar antes.

— Eu fiquei triste, mas é compreensível. — respondi, a abraçando com força e carinho.

Ficamos abraçados por um longo tempo. Os dois vivenciado sua própria dor e chorando suas próprias lágrimas, sem esquecer que um estava sempre ali para o outro. A mais improvável das amizades se tornou amor... Minha vida não fazia sentido sem Shivani. Sem a minha Doutora.

Com o amor da minha vida nos meus braços, eu tive a certeza de que não importa o que vivemos, todas as dificuldades, todos os problemas... Meu lar sempre será ela. Se estivermos juntos, tudo ficará bem. Ela vai ficar bem. Eu vou ficar bem. E o nós, que eu sinceramente não sei se vai voltar a existir, ficará bem de alguma forma.

— Você é muito importante pra mim! — ela sussurrou, me apertando ainda mais no abraço — Você trouxe luz pra minha vida quando tudo que eu tinha era dor e ressentimento. Eu era feliz daquele jeito, mas era solitária. Muito solitária. E você me fez entender que não preciso mudar nada em mim para que as pessoas gostem de mim. Você me acolheu com todos os meus defeitos...

— Você é a porra do meu mundo todo, Doutora. — respondi de volta, sentindo seu perfume e o calor de sua pele na minha — Vamos ficar bem!

— Ela vai cuidar da gente! — sorriu brevemente e eu assenti...

Não nos beijamos, não nos amamos. Apenas choramos abraçados até que dormimos... Não era uma reconciliação. Não era um retorno. Era apenas um encontro de duas almas quebradas, sentindo a mesma dor. Perdemos a nossa filha, nosso anjinho. Mas ela sempre estaria em nossos corações, por maior que fosse a dor, eu acreditava mais que tudo que as nossas vidas vão se ajeitar. E as nossas almas quebradas, destruídas e solitária... Encontrarão conforto e felicidade.

Uma vez, muito tempo atrás, li em um dos únicos livros que não são de medicina pelos quais me interessei, uma pequena frase que me marcou muito e agora posso dizer que finalmente entendi... Afinal: "Seja qual for a matéria de que as nossas almas são feitas, a minha e a dela são iguais".

Doutora Tentação (Shivley Maliwal)Onde histórias criam vida. Descubra agora