Fome

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Autor - Roosevelt Silveira


A fome me arrasa. Cada vez torna-se maior. Aumenta de minuto a minuto. E eu continuo aqui, neste labirinto escuro, sem poder sair para tentar saciá-la.

Não muito longe vejo, arredondada, tirando um pouco das trevas de onde estou, uma fenda por onde entra uma insignificância de claridade. Talvez, além dela, eu encontre o que comer. Mas, lá fora, está o meu inimigo - olhos verdes, arregalados - à minha espera. E eu tentar? Essa não!

É assim, arranjam um ignorante, grande, para me vigiar, me atormentar, achando que lhes dou prejuízo. Este mundo é complicado. Será que não notam que têm mais gasto com o capanga que comigo? Não, não notam. Parece que toda a humanidade vive de olhos fechados. Uns nascem para ser perseguidos desde os seus primeiros dias - como no meu caso; não pedi para nascer e vivo sofrendo, com o terror sempre presente - e outros são, sem que façam nada, os privilegiados, os que recebem elogios e carinho; aquele bobão, que não passa de um brutamontes e vive querendo me massacrar, está nessa sopa. E por que não eu? Coisas do destino. Destino?

A fome torna-se maior. Como é torturante. Meu ventre está fundo - ronca. Tudo vai ficando confuso. Sinto zonzeira.

Julgo que as causas do progresso têm muito a dever às barrigas vazias. Os seres trabalham para se manter e, com isso, progridem, afinam a inteligência vão tocando o barco pra frente, cada vez querendo mais. Quanto mais têm, mais querem. A ganância toma vulto. Talvez se não existisse fome houvesse um atraso medonho. Ninguém se preocuparia com a vida. Papo pro ar dias, semanas, anos, a existência inteira. Pensamento meu. Sei pensar, embora achem que não. E logo meu, que não tenho trabalhado. Mas aí está um exemplo. Se nunca o fiz foi porque conseguia, sempre, alguma coisa do dono desta casa - sem permissão dele, é claro. Por isso nunca progredi e, hoje, nada sei fazer. Coisas da hereditariedade.

Tudo ia muito bem, até que seu Tomás de Aquino (reparem: nome de um religioso, muito comentado, que, como afirmam, pregou a bondade), maldosamente, disse:

- Brigitte, precisamos dar um jeito nesses miseráveis. Estão destruindo tudo; estão... - e soltou uma palavra vulgar.

Desbocado. Até eu sei que falar uma coisa dessas é falta de educação. E, perto dos outros, procura vocábulos difíceis, faz gestos, tomando nome de culto e de educado. Mundo maluco, caduco, falso. Na realidade uma coisa; por trás, outra.

Miseráveis, ele disse. Vejam só. Então, agora, sou plural. Tenho a certeza de que, aqui, só vivo eu. Mais ninguém. Este labirinto é só meu, propriedade particular; ao menos por enquanto.

Engraçado o nome desses dois. Um verdadeiro contraste: Brigitte foi uma estrela de cinema; Tomás de Aquino, um teólogo. Uma se despia para que o mundo a visse "em pelo" e ganhasse fama, sendo considerada, por muitos naquela época, como imoral - hoje nudez virou moda; o outro procurou ser alguém exemplar - parece, pois a história, com o passar dos tempos, é modificada para pior ou para melhor, dependendo da proteção ou da astúcia do que não deixou que víssemos seus defeitos - e é tido como santo. Pelo menos o pecado da gula garantem que ele cometia, tanto assim que era de uma gordura exagerada. Orgulham-se do nome que têm e não são nada. Tolos.

Brigitte, Tomás de Aquino, plural. Daqui deste escuro tudo ouço. Aprendo literatura, religião, cinema e análise. Muitas coisas mais. E nas cacholas dos filhos burrinhos do seu Tomás nada disso entra. Burrinhos, não; perdão pela palavra. Até que, aos burros, devemos admiração. Trabalham, fazem força e só recebem, como recompensa, abusos e chicotadas. Injustiça. Melhor substituir por ignorantes.

Enquanto fiquei meditando, a fome ganhou campo. Preciso sair; do contrário não aguentarei mais.

Caminho devagar. Da última vez em que tentei ir encher o bucho quase que entrei pelo cano. Aquele amaldiçoado pulou sobre mim, com fúria, como se eu tivesse feito muita covardia com ele. É o Romão. Com alegria foi recebido nesta casa, como providência que seu Tomás teve contra mim. Puxa-saco. Fica o dia inteiro tentando me agarrar. Na hora do aperto corri, dei um baile nele e voltei pr'aqui. E aqui estou.

Olho para fora. Parece que a sorte me favorece. Não há ninguém. Vozes só na varanda. A claridade me ofusca. Mas, mesmo assim, tudo é belo, colorido. Maravilha se eu pudesse viver aqui, livre, como o safado do Romão. Vivo como cego: no escuro.

Prossigo com mais precaução. Não posso fazer barulho. Vou rente à parede. Por enquanto, nada. Estou no centro da casa. Eis a cozinha. Não sinto nenhum cheiro. Tudo trancado. Pior para eles, pois vou pegar a primeira coisa que vier pela frente. Egoístas, nem uma pequena sobra deixam. O jeito é ir à despensa.

Rápido, rápido, preciso achar comida. Talvez ali. Ah, achei! Vou comer depressa. Dou uma mordida, outra e mais outra com força.

- Aaaah! Aaai! Não, esse ferro caiu sobre mim. Estou preso. Maldita armadilha. A ânsia e a pressa foram as culpadas. Poderia ter notado.

Dor enorme. Estou perdido. Imprensada a coxa. Não morri, mas - o que adiantou? - não posso escapar. Livrei-me de um perigo para cair noutro. Que azar!

Minhas vistas tornam-se turvas. Não mais sinto o vazio do ventre. Tudo roda em volta de mim.

Escuto, neste instante, a voz feminina, que considero antipática:

- Ouvi um barulho. Vá à despensa ver se pegamos um miserável.

Miserável é a mãe dela. E ainda por cima, copiando do marido. Estou tão rebentado que quase mais nada sinto. Um calafrio me percorre a coluna. É o medo. Passos no assoalho, vindos nesta direção. Breve, aquele peste chegará até mim, dará um sorriso malicioso, e talvez me amasse a cabeça. Meu sangue voará pelos ares e pingará nas tábuas, que ficarão como crianças sardentas. Deixarei esse sinal, passageiro, de que já existi. A rabugenta se alegrará com minha morte. Alguém me embrulhará e, sorrateiramente para que nenhum vizinho veja, me levará para um terreno baldio, distante. Ou então, o mais provável, me entregará a meu perseguidor peludo, que, com aqueles olhos brilhantes e abusados, fará comigo o que sempre planejou.

Menos um rato, um roedor na terra. Por certo serei morto. Porque também quis matar, mas só um pouquinho da minha fome.

Encolhido, trêmulo, aguardo o meu fim, que já sei qual será.

Será que sei mesmo?

Luiz Amato e ConvidadosOnde histórias criam vida. Descubra agora