Estavam todos em uma única caneca

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Autor: Tony Rodrigues


Estavam todos com uma única caneca, a minha caneca de chope, lembrança daOktoberfest do ano passado, notei isso de manhãzinha ainda e não gostei. Eram muitospara uma única caneca que, apesar de propícia a muito chope, estava vazia há algumtempo já. Se estavam bêbados? Não sei o que o álcool lhes faria naquela hora, por seuscomportamentos eu apenas daria de ombros e diria – Sei lá... –, o que me chamou aatenção mesmo – e eu havia acabado de acordar – era aquela aglomeração em torno daminha caneca de chope. Tive nojo de mim por permitir que estivessem todos ali... Tivenojo da aglomeração... da caneca... dos últimos quinze anos de minha vida.Na parede à direita da pia da cozinha há uma enxada e um rastelo, encostados há algunsdias, promessa ainda não cumprida que fiz ao arquiteto do local, de que eu limparia aparte do terreno onde o mato cresce constantemente e pela qual nós dois transitamos.Aos pés do rastelo, um pano já meio encardido e esquecido – e relembrado – todos osdias, serve para limpar esse estranho suor que brota do piso do cubículo a que chamo decasa, alguns chamariam de depósito, muitos de palácio, todos de úmido.É sábado, dia propício para uma ressaca. Acabo de acender um incenso para chamar aatenção deles, a música de meditação e relaxamento pouco ou em nada parece afetá-los– como poderia? O foco deles (e agora meu) é a caneca. Fico olhando tudo aquilo porum momento que se estende entre o silêncio e a vontade de reflexão, mas não é dereflexão que preciso no momento, não é mesmo? Nada de incenso, música ou controledo ar que entra e do ar que sai, basta um grito, um gesto mais brusco, uma atitude maisenérgica e a multidão se dispersará, não é mesmo? Acaba de entrar uma vespa e estoucerto de que vou matá-la.Sobre as cinzas do incenso decepei-lhe a cabeça do corpo contorcido, eles nem aí paraisso. Nem adianta chamá-los de malditos, se soubessem da verdade provavelmente sedispersariam, foi assim com muitos desde o tempo de Adão, com eles não seriadiferente. O que nos torna insignificantes perante a natureza é o que sabemos, e osintrusos tornaram-se significantes para mim pelo que estão fazendo com minha caneca de chope da Oktoberfest do ano passado. Nela há um vovô sorrindo, indiferente a tudo oque se passa exatamente aqui. Sinto-me um micróbio, um filho da putrefação, dentrodeste útero úmido por onde adentram alguns feixes de luz que conseguem driblar asquase cortinas que espalhei pelas janelas emboloradas. Parece – e isso tem um pouco defé – que apenas meu guarda-roupas parece resistir à casa.Quero ser consumido pelo sol da manhã, mas algo me impede, acordar nesta cama todosos dias castiga meus ossos – ou eu me castigo? – e a minha alma, diante de tantoabandono, não sabe se arromba a porta de dentro para fora e se lança no sol a procura devento e amigos, ou se volta à posição fetal para dormir e sonhar que escuta a si mesma,esquecida de tudo e imersa em lembranças e desejos. Uma boneca de panosremendados, há algum tempo, diria que tudo é um eterno faz de conta, então façamos deconta que eu não me esqueci deles, pois que os desgraçados ainda estão lá e nãoesqueceram minha caneca de chope da Oktoberfest do ano passado.Sabia que não adiantaria gritar nem ameaçá-los, então enchi a caneca com água, issomesmo, combata-se a sede com água, mas, ainda assim, nenhum largou a caneca. Nempoderiam, de tão concentrados que estavam na missão a que Deus, o Universo, Alguémou Algo os teria designado: chatear-me neste sábado de manhã, enquanto eu procuravauma faca para passar margarina com gosto de manteiga no pão. Coisas de hoje queamanhã tornarão nossos desejos em lembranças: margarina com gosto de manteiga,pipoca com gosto de churrasco, água com sabores a escolher – eu sei, eu sei, na área dainformática pode-se visualizar – literalmente – com muito mais praticidade os produtose processos que nos iludem – e aludem, e exludem - sobre nossa evolução, mas prefirolistar o pseudoavanço através daquilo que comemos, estamos muito mais próximo deuma revolução parasital do que podemos imaginar, em breve nada mais de dentes, e aboca se tornará pequeno orifício, e em breve os dedos, e os braços e pernas, e entãoestaremos importunando algum outro verme, agrupados dentro de uma caneca de chopevazia esquecida há alguns dias sobre a pia da cozinha  

Luiz Amato e ConvidadosOnde histórias criam vida. Descubra agora