Autor: Geraldo Medeiros Jr.
Época longínqua aquela em que a Terra descansava com a face voltada para o sol. Milhares de anos de existência esculpiram o cenário. O céu não era totalmente azul. A nordeste era negro, e em meio à escuridão, via-se o brilho pálido de estrelas brancas. Ao centro, a cor mudava para o vermelho sangue, sem estrelas. E a sudeste, um escarlate diáfano, cortado pelo horizonte plano que servia de base para o gigantesco arco do Sol, laranja e estático. O mar fazia a paisagem brilhar de forma suja. Não havia arrebentação ou ondas, pois, sequer uma leve brisa soprava. O movimento da água mais parecia um tranquilo respirar. Quebrando a visão opressiva, movia-se uma figura, um ser que à distância, lembrava remotamente um primata antigo, mas de dimensões avantajadas.
Metodicamente caminhava e parava para colher algo na areia. O brilho do horizonte ofuscava os detalhes do seu corpo, até que, ao recuar para o interior da margem, longe do espelho d'água, surgiu uma figura forte, de pele grossa, escura e coberta por uma lanugem bege clara. Destacavam-se da fisionomia simiesca, os vivos e brilhantes olhos. Contrariando a aparência, o ritmo de seus movimentos era bem refinado.
Insistentemente prosseguia, a esmiuçar a areia com dedos grossos e ásperos, porém precisos. Procurava por algo naquele fim de tarde que parecia interminável. A cada achado, resmungava numa língua própria, até que, finalmente a exploração cessou. Ao colocar a última concha na bolsa de couro coberta de escamas, como o de um réptil, retornou para o local de onde viera. Não ficava longe da praia.
Na tribo, as fêmeas eram tão fortes quanto os machos, porém menores. Controlavam a sociedade numa espécie de sistema matriarcal. Uma delas, ao ver aquele macho retornar da praia, correu em sua direção a chamar várias vezes: - Naak, Naak! Ao ouvi-la, ergueu os olhos em direção à ela e abriu a boca, a exibir um grotesco esboço de sorriso.
A fêmea precipitou-se a abraçá-lo, e nas pontas dos pés cheirou-o frenética e carinhosamente. Ele retribuiu e foi logo mostrando a bolsa cheia de conchas multicoloridas. Entregou-a e pronunciou a palavra Luha. Este devia ser seu nome, pois, uma fêmea mais velha, ao longe, gritou a mesma palavra e ela, ainda abraçada a Naak, virou-se para atender ao chamado. Parecia haver um laço parental entre as duas, talvez fosse a sua mãe. Com um gesto brusco de mão, a velha sinalizou para que ela retornasse à cabana. Luha olhou para Naak com ternura, e despediu-se, levando consigo a bolsa.
Diferente dos demais integrantes da tribo, Naak era pensativo. Não se preocupava somente com a sobrevivência. Fazia diariamente suas caminhadas solitárias, mergulhado em reflexões e, sempre que possível, passava horas a observar com assombro as estrelas. Acreditava que um dia desvendaria seus mistérios. Mas algo o inquietava mais do que o espaço. Histórias contadas pelo seu povo mencionavam deuses que caminharam sobre a Terra há milhares de anos. Naak imaginava se aquilo poderia ser verdade ou se se trataria somente de uma superstição: "Por que os deuses nos abandonaram"? – Perguntava-se com crescente angústia no peito.
Certo dia, para aliviar a sede de saber, Naak teve a ideia de conversar com a sábia da tribo. Se mito ou não, diziam que ela era portadora de segredos milenares. De fato, a idade avançada e experiência, tornava-a conhecedora suprema dos mais herméticos mistérios. No entanto, questioná-la sobre tais lendas poderia soar como uma transgressão, uma violação do conhecimento sagrado, ou até mesmo ser tomado como um ato de desafio aos deuses. Mesmo assim, Naak ficou ansioso para conversar com ela. Desejava expôr suas dúvidas, suas inquietações. Tinha de saber mais sobre as origens da tribo.
Pois, é costume da sábia isolar-se para meditar. Quem sabe Naak pudesse aproveitar tal momento para falar com ela. No entanto, em situações assim, temida por seus poderes mágicos, ninguém ousaria perturbá-la. Isso porque passava horas em transe para buscar orientação junto aos deuses. Segundo ela mesma, são eles que ditam as leis que regem a vida da tribo. Portanto, quem tentar quebrar a concentração do único elo entre o divino e a tribo, correrá o risco de ser vítima de uma terrível maldição.