Pai

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Autor: INALDO CAVALCANTi


PAI!, quis gritar, mas não tive forças. Acho que gritei, não tenho noção dos acontecimentos; especialmente quando o sofrimento é muito grande. Um anestésico. Menos mal? Ciente da minha mediocridade. Não gritei. Ao menos foi a conclusão que tirei para mim mesmo. Não que meu pai não tenha me ouvido. Simplesmente: sou fraco. Sou. Sempre achei que as situações já trazem a explicação em si mesma. Um mesmo pacote com tudo dentro. Quase inefável de tão belo que é. Quase. Digo porque nada é completo.

Estava frágil, tão fragilizado como nunca havia me sentido. Ou sempre fora. Ou as dúvidas sempre existem nas cabeças frágeis, inseguras que são. Sou.

Mas, Pai!, desta feita gritei porque me sentia muito fraco e tive medo, muito medo. À beira do desespero. Quase entregue à loucura. Estava só, os que vivem só são um pouco meio loucos e comigo não era diferente. Mas os que vivem sozinhos são também muito seguros de si, meio que donos dos espaços, dos meios, da cena. Senhores do palco. Eu, não; não agora.

O medo, Pai!, saía do meio da noite, uma escuridão que dizia me ter dentro dela, envolvendo, trazendo-me a um leito desconhecido, um lugar sem intimidade comigo. A noite dentro de mim, me descontrolando. Queria eu abandonar-me, mas era tarde, como se estivesse eu no meio de uma estrada longa: sem meios para ir ou para voltar. Tortuosidade a me tirar do prumo. Por medo gritava Pai!, por medo e por desejo de acordá-lo, a querer uma proteção, uma companhia para amenizar a dor – sozinho se fica mais enfraquecido –, a fazê-lo ouvir meu sofrimento ali, na hora, em seu ápice. Desejo meu de tê-lo comigo.

Um dia para esquecer.

Um dia para não esquecer.

Uma noite, quase disse agora, semelhante à eternidade. Tempo eterno. Tempus fulgit. Para não se deixar esquecer.

Tempo da noite em mim, alma opaca; apagada pela escuridão.

Naquele leito desconhecido, sem intimidade, me recolhi: encolhido como uma criança tímida. Amedrontada e angustiada. Uma sombra em mim; não para mim, para que eu pudesse dizer com regozijo: obrigado, Pai. Mas não. Encolhido, em meio a uma escuridão sem som até, ou ensurdecedora, ou nada a existir; o que talvez seja pior. Mas talvez existisse porque a noite não tem dúvida, sem fragmentos a salvar-me do medo. Nem o Pai. Nem Ele. Meus gritos abafados pela escuridão dentro de mim? Não houve grito algum. Alma muda?

Sei não. Ocorre-me que o medo é Ele, como um dia ouvi de um Pregador. Lá, ouvi e silenciei com medo, talvez. Guardando a informação como se a tivesse matado. Mas, não. Reservado, talvez; esquecido, será? Por que o tempo vem quando nós não estamos? Agora pergunto, sou livre e sei não, sou meio infantil, quero fazer descobertas, fuçar... Lá, não. Não saíam por quês, queixumes, distâncias nem nada. Nada mesmo. Eu e nada.

Eu e o silêncio. E o silêncio pesa quando é a própria escuridão; e a escuridão é um vazio; e o vazio é o medo. Tudo dentro de mim, o que é muito pior. Muito, mas muito pior. Pai!, nem se fala por não haver medida. O que é imensurável não requer régua.

Assim só uma palavra vinha à minha mente, à boca, talvez, crescia em meio ao meu interior lerdo agora, inseguro na plenitude da pequenez, a dizer Pai como um pedido de socorro, tentativa de encontrar uma brecha. Uma busca à saída.

Pai!, gritei consciente, como se o visse, ou uma luz a dizer dele, ou minha mente a dizer dele, ou meu coração a sentir segurança. Uma voz a abrir a porta e encontrar a distância, distorcer o caminho, mostrar direção. Uma mão em meu ombro, amigo?, creio ter perguntado. Mas creio mesmo, tenho fé e o vi, o ouvi, vi a luz, a porta se abrindo, o silêncio se amaneirar, perdendo o peso a fazer bem, eu já em meu leito, na intimidade de tudo, dos espaços, do tempo, de mim. Ciente até do sofrimento, de que havia silêncio. Sei agora. As lágrimas – ainda vivas – faziam as lembranças próximas. Lembravam-me.

Pai, disse assim sem peso na palavra, como se ali estivesse Ele a tomar o lugar da escuridão, do silêncio, do medo, do vazio dentro de mim; não existindo mais vazio, e eu pudesse, enfim, me acomodar em meu leito, cama íntima, conhecedor das baixas do colchão, dos recantos de aconchego, do cheiro meu, do travesseiro manso a aquietar minha cabeça. Aos poucos ia retomando meu espaço de volta, estirando as pernas, sorrindo, até. Depois da dor há uma mansidão que ilumina o rosto e o riso não pode ser escondido, suave que seja, fugaz e tudo.

O corpo cansado – a dor maltrata a gente, deixa a vida sem forças, espanca principalmente a alma, dilacera o coração – só quer agora o prazer do esquecimento: sem palavras, sem pensamentos. Sem memória. Como se estivesse nos braços do Pai, com todo conforto que traz a segurança.

Meu corpo se esticou, revirando ossos, arrumando as juntas, músculos relaxados. Pareceu todos os pontos em seu devido lugar. Um tempo para a acomodação. Acomodado, agrupou o corpo a dizer que o silêncio é bom, um sossego sem ruídos.

Será isso paz?, foi o que me perguntei; sei, agora sim, que sorri com mais largueza, certo da beleza em meu rosto, da transparência da alma. Nessa hora eu disse: Pai!, para logo depois fechar os olhos e dormir sem receios da noite, uma escuridão dentro de mim, sem vazio. Calmaria. Meio dengoso até com todo aquele espaço meu, e a maciez dos pensamentos, sem roupa nenhuma, nem censura, apesar dos meus tantos anos escondidos pela tinta nos cabelos, mas expostos nas rugas do rosto. E nos janeiros que conto: não há como esquecer do envelhecimento.

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Luiz Amato e ConvidadosOnde histórias criam vida. Descubra agora