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        Xiao Zhan


Saio do jornal mais cedo hoje, rumo à Polícia Federal.
Objetivo: renovar meu passaporte.
Mesmo ele tendo vencido sem que eu tenha usado a muito tempo, quero deixá-lo válido.

Meu pai uma vez disse, logo que eu entrei na faculdade: sempre mantenha seu passaporte em dia, nunca se sabe quando terá que viajar atrás de uma matéria.
Isso ainda não aconteceu comigo, mas o conselho segue válido, assim, o metódico em mim já pagou as taxas e fez o agendamento.
Felizmente, não demora muito lá e antes das dezoito, já estou livre.
Sem condições de eu ir para a boate, todo suado e descabelado, assim rumo para casa, para um banho e trocar de roupa.

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Chego ao endereço, pouco depois das vinte horas, pois seria muito estranho ser o primeiro a chegar.
Minha ideia é conversar com o bartender e o segurança, na esperança de que eles se recordem delas.
O motorista do Uber para próximo do portão principal e agradeço antes de sair do veículo.
Trata-se de um casarão colonial, extremamente conservado.
Grande é pouco para descrevê-lo, já que ocupa quase um quarteirão.
A área externa é cercada por coqueiros, que agora à noite estão iluminados, deixando a fachada ainda mais bonita.
Eu nunca falaria que isso é uma boate, parece mais um museu, mas acredito que a intenção seja essa mesma: discrição.
Caminho até o portão principal, estranhando que não há uma fila, nem nada.
Colado à porta de madeira maciça, um homem alto, careca e musculoso, todo de preto, me observa, com cara de poucos amigos.
— Oi, boa noite!
— Nome? — pergunta à queima roupa, me ignorando e olhando para o tablet em sua mão.
— Xiao Zhan — digo. — Mas eu não tenho reserva. Já está cheio?
— Só sócios são aceitos, sinto muito.

Tomado pela surpresa, demoro alguns segundos para reagir.
Mas que grande merda!
Podia constar isso no site, teria poupado meu tempo.
— Oh, eu não sabia — replico e é a mais pura verdade.
Mordo os lábios, pensando se devo tentar a sorte, vendo se o mal-humorado conhece as garotas.
Ah, foda-se.

Pego meu próprio tablet da bolsa e abro a página do relatório policial onde consta a foto da primeira vítima.
— Talvez, você possa me ajudar — começo, pensando em como abordá-lo.
— Sei que você deve ver muitas pessoas, mas alguma chance de ter visto essa garota aqui? — indago e viro o tablet na sua direção.
Ele mal olha para a foto, tampouco se abala e, olha, devo dizer que não é uma foto bonita, não.
— Por favor, estou ajudando a polícia a descobrir o que houve com essas moças — complemento, alternando a foto.
— Nunca vi.
O filha da puta nem olhou.
— Tem certeza? Quer olhar com mais calma?

Uma senhora passa ao nosso lado e então entra no casarão, mas antes olha na minha direção.
Certeza de que é alguma funcionária, curiosa com a minha interação e do segurança.

— Com certeza, como disse, nunca vi essas garotas — retruca, aumentando o tom de voz.
— Ok, vou deixar meu cartão com você e, por acaso, se você lembrar de algo, me liga.
Por um momento, achei que ele sequer fosse pegá-lo, mas aceita.

— Boa noite — digo, derrotado.
Gesticula com a cabeça e me dá as costas.
Começo a caminhar em direção à calçada, já abrindo o aplicativo do Uber, quando dou uma última olhada para o casarão.
Meus olhos observam o exato momento que o troglodita joga o cartão que acabei de entregar no lixo.
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Acordo tarde no sábado.
Depois do fiasco da noite passada, a frustração bateu forte e o sono demorou para vir.
Reli toda papelada pela enésima vez, pensando o que eu podia fazer a respeito, mas a única pista é que as vítimas eram ativas no mundo BDSM.
Será que elas frequentavam outros clubes?

É uma possibilidade, certo?
Estou a ponto de ligar para YuBin e ver se ele sabe de mais algum lugar assim, quando meu celular toca.

Número desconhecido.
Atendo, já esperando que seja engano, pois fora YuBin e algumas ligações da minha amiga que mora em São Paulo, não tenho muito contato com mais ninguém.
Desde que meus pais faleceram, tem sido apenas eu. Até fui a uma festa de aniversário de um conhecido, um ano após o falecimento deles, mas era como se todos os olhares estivessem em mim; a pena, seguida dos comentários que buscavam confortar, mas que para mim, só fazia a ferida abrir e sangrar.
Eu saía destas ocasiões arrasado, então simplesmente as evito.
— Alô?
— Xiao Zhan?
— Sim, com quem eu falo?
— Meu nome é Celeste, eu trabalho no Sanctuary — diz e meu coração falta sair pela boca.
— Te vi ontem conversando com o Ed e peguei seu cartão.

— Ok...
A mulher pegou meu cartão no lixo. Deve ser importante.
— Você estava perguntando sobre umas garotas, certo? Você é policial?
— Policial, eu? Não, imagina. Sou um jornalista — revelo, tranquilizando-a. Ainda assim, ela parece tensa.
— Sim, eu estava perguntando sobre elas. Você as conheceu? Consegue me ajudar?

— Me encontre no Parque do Taquaral, hoje, às dezessete horas, e podemos falar a respeito. Acho que posso te ajudar.
Meu coração bate acelerado no peito. Eu não conheço esta mulher, mas ela parece disposta a ajudar e, realmente, vi uma senhora passando por mim, ontem.
Eu não seria louco de marcar um encontro num local ermo, mas o parque é público e movimentado, assim acho que não há perigo.
Preciso descobrir o que Celeste sabe.
Talvez seja a pista que precisamos sobre os assassinatos.
— Combinado, Celeste. Te encontro lá.
— Até lá. — Desliga.

Penso em ligar para YuBin e compartilhar as novidades, mas lembro que ele disse que iria para São Paulo visitar os pais do namorado e não quero atrapalhar.
Vou falar com Celeste e depois conto para ele.
Vai dar tudo certo!


No horário marcado, estou no parque municipal, exatamente no local que combinamos, o “Portão 03”.
Passados uns dez minutos, já começo a duvidar que ela vá aparecer, quando então eu vejo uma senhora caminhando na minha direção.
Ela anda olhando a todo momento para os lados, como se temesse estar sendo seguida.

Jesus, Xiao Zhan. Você está vendo muita série policial.

— Celeste? — pergunto, quando ela se aproxima mais de mim.
Gesticula que sim, e aceita a mão que eu estendo para cumprimentá-la.
—Obrigado por ter me ligado — começo, nervoso também.
Sentamos num daqueles bancos de concreto, na sombra de uma árvore e então começo a questioná-la.
— Você trabalha na boate, Celeste?
— Sim, já faz dois anos — responde, visivelmente tensa. — Trabalho na cozinha, desde que cheguei no país. Sou da Venezuela — explica.
Puxo meu tablet da bolsa e mostro as fotos para ela.
— Você as conheceu? Lembra-se de as ter visto lá?
Celeste olha para fotos e posso ver surpresa e medo em seu olhar.
— Eu...
— O que, Celeste?
— Ontem, eu só vi de relance a foto, quando passei ao lado do Ed, por isso, resolvi te ligar — diz, apoiando o rosto nas mãos. — Fiquei na dúvida se eram elas.
—Você as conheceu?  Pela sua reação, ela conheceu, mas preciso confirmar.
— Sim — diz, me olhando com os olhos marejados. — Eu fico a maior parte do tempo na cozinha, é raro eu ir até o salão principal, ou para as demais salas. Só se algum dos mestres pede algo da cozinha.
— As garotas não eram daqui.
— Como assim?
— Elas não falavam português, mas eram muito simpáticas e sorridentes. Acho que eram da Alemanha. Sim, foi isso que Mistress Tanya disse quando as levou para conhecer a cozinha, logo que chegaram aqui no Brasil, foi assim que as conheci — complementa, com um sorriso triste.
Tento lembrar o significado de mistress. Lembro-me de ter anotado algo a respeito. Ah sim, é quando uma mulher que exerce o papel de dominante nas cenas do BDSM.
— Você sabe o nome delas, Celeste?
Olha para os lados, assustada, mas gesticula que sim.
— Você pode me contar.
— A loira chamava Heide e a morena, Raika. Eu as vi, duas vezes na boate, depois de elas irem à cozinha. Elas estavam de férias, parece.
— Ok.
— Você sabe quem pode as ter machucado? Ou com quem elas estavam? Qualquer informação pode nos ajudar.
— La Muerte.
Como?
— Um dia, eu tive que ir buscar óleo no estoque. Então eu ouvi, eles conversando e falando algo sobre elas. Eu ouvi o nome, sabe. Algo sobre uma encomenda. Depois deste dia, elas nunca mais voltaram.
— Ok, você ouviu quem falando?
— La Muerte. A Morte — murmura, como se tivesse medo de ser ouvida.
— É o apelido de alguém?
— Sim, o chamam assim. Eles não me viram no estoque, mas eu nunca esqueceria seu rosto.
Faz o sinal da cruz.
— Ele é o mal.
— Ok, você sabe me dizer, mais alguma coisa sobre este tal de Morte? Como ele é? É um dos sócios? Meu amigo é policial e poderá nos ajudar.
Celeste arregala os olhos.
— Não... nada de polícia — solta, desesperada.
— Eu tenho que avisá-lo, Celeste, eles têm recursos para descobrir quem são os associados, e tentar saber mais sobre esta pessoa.
— Você não entende, menino.
— O que Celeste?
— La Muerte. Ele é da polícia — diz, se levantando do banco e ajeitando a bolsa no ombro.

Puta que pariu.
Ainda em choque, agradeço a Celeste por todas as informações e garanto que seu nome não será mencionado, a mulher realmente estava muito assustada.
“A Morte.”
Um arrepio percorre meu corpo e balanço a cabeça, tentando assimilar toda a conversa com ela.
Espero que YuBin já esteja de volta, pois precisamos conversar e este é o tipo de assunto que não dá para falar por telefone.


(....)

DestemidoOnde histórias criam vida. Descubra agora