Não dava mais para devolver a rolha à garrafa

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Marília.

Não conseguia dormir de novo.

Lembra-se de O coração revelador, de Edgar Allan Poe? Provavelmente você leu no ensino médio. Não? Bom, vou dar um resumo. Um cara mata outro e esconde o corpo embaixo das tábuas do assoalho de sua casa. Ele ouve as batidas do coração do homem embaixo das tábuas por causa da culpa que sente. Ou isso, ou o cara é maluco, eu nunca soube ao certo.

Enfim, essa sou eu... com uma pequena modificação, claro. Estou vivendo O coração farejador, de Marília Dias Mendonça. Passei a noite toda virando na cama, sentindo o cheiro de Maraisa tão forte no meu travesseiro que, depois de duas horas tentando dormir, levantei e tirei os lençóis. Também peguei um travesseiro extra que guardava no fundo do closet, e no qual Maraisa nunca havia tocado, e joguei a roupa de cama e o outro travesseiro no corredor.

Snif-snif.

Tum-tum.

Deitada no colchão sem lençol, com o travesseiro sem fronha, eu ainda sentia o cheiro dela. Isso nem era possível fisicamente. Mas o cheiro não diminuiu. Bati no travesseiro com o punho para afofá-lo.

Tum-tum.

Depois de um tempo, levantei-me da cama e revistei o quarto. Ela devia ter deixado um frasco de perfume em algum lugar. Tirei tudo das mesinhas de cabeceira, cheirei a embalagem de lubrificante inodoro e olhei embaixo da cama. Nada de perfume. Snif-snif. Tum-tum.

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Na manhã seguinte, eu estava me arrastando. Pelo menos era sábado, e eu não precisava ir para o escritório. Embora eu preferisse trabalhar a ter a conversa que teria com Noah hoje. Eu devia ser sádica. Ou era masoquista? Sempre confundia as duas coisas. Qualquer que fosse o nome, o momento só podia ser uma terrível coincidência. Eu estava prestes a magoar as duas pessoas com quem me importava na vida.

Eliane me recebeu na porta de cara feia. Eu não poderia estar mais eufórica quando ela não falou nada, bateu a porta na minha cara e gritou daquele habitual jeitinho simpático.

Noah estava feliz e animado, como sempre. Ele saiu, e fizemos nosso cumprimento ensaiado.

Depois, quando ele olhou para mim, franziu o nariz.

— Está doente? Ou aconteceu alguma coisa?

— Não. Por quê?

Ele saltou os dois degraus da varanda.

— Parece abatida. E apareceu aqui no meio da noite outro dia, e sua voz estava estranha.

— É. Desculpa por isso. Não queria te acordar.

Ele deu de ombros.

— Minha avó disse que você queria conversar comigo sobre alguma coisa.

Respirei fundo e respondi:

— Sim. Hoje temos que conversar um pouco.

Entramos no carro, prendemos o cinto de segurança, e Noah virou para olhar o banco de trás.

— Não trouxe as varas de pescar?

Balancei a cabeça.

— Hoje não, amigão. Quero te levar a um lugar.

Ele ficou sério.

— Tudo bem.

Durante a viagem para o porto, tentei falar sobre coisas sem importância, mas tudo parecia forçado. Minhas mãos começaram a suar quando estacionei o carro. Talvez não fosse uma ideia tão boa conversar sobre a mãe dele, afinal. Noah ainda era muito novo. Eliane provavelmente teria um preço para ficar de boca fechada. Podia ser todo o saldo da minha conta bancária, mas, no momento, o investimento parecia ser bom. Adiar tudo isso seria melhor para o Noah, pois ele ainda era muito jovem.

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