Capítulo 1

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Se existir uma palavra certa para descrever meu estado no fim de um dia de trabalho essa palavra é exausta. Claro que nem sempre era assim. Havia dias em que eu conseguia fazer minhas tarefas com calma, quando tinha sorte.

Comecei o dia varrendo a parte externa da casa, isso ainda quando os raios de sol mal apareciam no horizonte. Depois limpei a piscina, as calhas, desentupi um vaso sanitário, lavei alguns tapetes e ajudei o jardineiro, mas só depois de lavar a casa dos cães e ter dado banho neles.

Mas se quer saber, eu tenho sorte. Nem toda formiga tem um emprego fixo como eu. Geralmente vivemos de bicos, trabalhando temporariamente em uma casa, uma obra, no que aparecer, já que escolher serviço meio que não é um luxo que podemos nos dar. Eu tinha um emprego! E, além disso, tinha o melhor patrão que alguém poderia ter. O Sr. Lopes não só era simpático, como não era abusivo e também nunca exigia mais do que sabia que conseguíamos fazer. Ele era tão legal com todo mundo, que ganhou a lealdade de seus empregados: da faxineira ao cara que vem consertar os eletrônicos da casa. Por outro lado, tudo que ele tem de bom patrão, sua mulher tem de nojenta.

Ela é terrível! Se ao menos fôssemos tratados como os cães dela, eu acharia uma maravilha. Mesmo os de guarda, que vivem no quintal presos em correntes, têm tratamento médico e até dentista. Dentista! Se eu precisar ir ao médico, eu passo a madrugada em um posto de atendimento rezando por uma consulta para uma semana depois, se eu tiver sorte. Ela nos trata como... Como formigas.

O mais irônico em tudo isso é que ela nem sempre teve toda essa vida boa. Ela trabalhava na mercearia do pai, ou seja, ela era um mico, da terceira camada e, por algum motivo, totalmente desconhecido, o Sr. Lopes a transformou em uma arara, que fica em casa sem fazer nada o dia todo, o que é ótimo pra ela, que não sabe fazer porcaria nenhuma.

Por mais que aquela mulher me irritasse, eu não iria deixá-la estragar meu dia, e aquele era o maior de todos! Há exatos 27 dias, minhas duas primas tinham ganhado a oportunidade de participar de uma seletiva, visando uma bolsa de estudos no único instituto de cursos profissionalizantes de Campina, nossa capitania, o que significava que, naquele mesmo dia, os resultados estariam chegando em casa, pelo Correio. Desnecessário dizer que estávamos mais que ansiosos. Aquela era uma chance em um milhão ou, para ser mais exata, 1.314.000 pessoas por vaga, trinta ao todo.

Gisele e Cintia podiam não ser as garotas mais inteligentes da capitania, mas sem dúvida tinham se esforçado. Estudavam dia e noite enquanto todos nós nos empenhamos ao máximo em conseguir o suficiente para sustentar a casa sem precisar fazê-las trabalhar fora, dando assim todo o tempo para que elas estudassem. Então, mesmo que eu estivesse exausta, eu não pensei duas vezes antes de guardar todo o material de limpeza e sair correndo para a estação de metrô, querendo chegar o mais rápido possível em casa.

Aquela era a única forma de nos locomover dentro da cidade. Quero dizer, para nós, que pertencemos à última camada. O gueto ficava depois do distrito industrial, bem longe das zonas principais da cidade, onde ficavam os prédios de comando, o quartel das forças armadas, os hospitais centrais, a casa do capitão e todas essas coisas importantes.

Todos os dias, quando passávamos pelo ponto mais alto da cidade, atravessando da área onde o Sr. Lopes morava, para o gueto, eu podia ver os prédios que pareciam brilhar vistos dali de cima.

Sempre ficava imaginando como deveriam ser os transportes das pessoas nas camadas mais altas. Sem dúvida eram melhores que nosso metrô, cheios de gente, onde muitos acabavam viajando sentados no chão, por não aguentar mais o cansaço de um dia de trabalho. Eles não eram de um todo ruim. Eram de uso gratuito, o que já era de uma ajuda enorme, e pareciam relativamente limpos. Só que eu não conseguia parar de pensar em como nossos mundos eram tão diferentes. Os carros que eles tinham pareciam ser a coisa mais luxuosa do mundo, mesmo o do Sr. Lopes, que insistia em dizer que o dele era só uma lata velha.

Jogos da Ascensão - Livro 1 da Duologia Jogos da AscensãoOnde histórias criam vida. Descubra agora