Passei os próximos dias aguentando as chatices da esposa do Sr. Lopes. Ela ficou me encarando com aquela cara de cão chupando manga toda vez que passava por mim. Paulo, o jardineiro, dizia que era porque ela tinha inveja de mim. Tá legal. Inveja. Ela deve morrer de inveja por eu trabalhar o dia todo na sujeira enquanto ela fica no bem bom com aqueles minicães barulhentos dela.
Mas Paulo insistia em dizer: "Danitria, você já olhou bem para a cara daquela mulher? Parece que um caminhão passou por cima dela. Se não vivesse fazendo aqueles negócios no rosto o tempo todo, talvez fosse menos assustadora. Já você é bonita até com um penico na cabeça.".
Eu tentei não rir, mas era impossível, por vários motivos. A única coisa que me preocupava era a possibilidade de Paulo ter voltado a beber, porque essa seria a única explicação para ele estar falando todas essas coisas.
Paulo era um senhor de uns quase sessenta anos, que trabalha na casa dos Lopes desde sempre. Ele também era uma formiga, como eu, uma coisa meio óbvia, já que só nós, formigas, trabalhamos com coisas como criadagem, peões de obra, encanadores e essas coisas. Ele sempre foi um senhor muito atencioso e sempre arrumava um jeito de jogar conversa fora comigo. Nossa amizade tinha começado por nosso ódio coletivo pela madame.
Eu tinha pouco trabalho naquele dia, já que havia conversado com o Sr. Lopes, que me deixaria sair mais cedo, para poder participar da loteria. Porém, antes de ir embora, tirei um tempo para ajudar Paulo com as plantas dele.
Paulo é totalmente culpado pela minha paixão por plantas. Apesar de não ter muito onde conseguir informações, o pouco que eu aprendia com ele era o suficiente para alimentar meu interesse. Ele sempre foi o único que nunca me achou estranha por gostar dessas coisas, diferente de meus primos, que gostavam de me chamar de perturbada, porque, de acordo com eles, gostar de animais, ursinhos de pelúcia, carros e artistas de televisão é normal, mas se você acha um arbusto algo interessante e bonito, aí sim você é uma louca de pedra.
Contei para Paulo sobre a minha ideia de participar da loteria naquele dia e sobre como Diego estava animado com tudo aquilo. Ele achou uma excelente ideia e disse que também tentaria, se fosse mais jovem.
É claro que ele não deixou de fazer o discurso sobre como os jogos na verdade servem para divertir as pessoas e mostrar como todos somos apenas coisas descartáveis para os das altas. O que não deixava de ser verdade. Afinal de contas, se eu fosse sorteada na loteria, eu seria uma peça, e assim como uma peça em um jogo de tabuleiro eu seria manipulada e teria que fazer o que meu jogador quer. Tínhamos que contar não só com a nossa sorte, mas também com a sorte de nosso jogador.
Eu estava pensando nisso quando Paulo me cutucou e perguntou como eu gastaria todo o dinheiro dos jogos.
— Já até posso ver. Minha Danitria, uma madame.
— Eca! Não! Só quero arrumar o telhado de casa, para que não precisássemos pegar as panelas e os baldes toda vez que chove por causa das goteiras, e talvez arrumasse as paredes, mas sem dúvida alguma eu iria tentar comprar uma cama e um colchão novo para cada um de nós. Esse é o maior luxo em que posso pensar.
— Não é um plano ruim.
— E eu não saberia ser como esse povo — comecei a dizer. — Não acho que poderia viver como eles. Não me vejo dando ordens e coisas do tipo. Nunca me encaixaria.
— Deixe disso — disse afastando uma mosca que voava na frente de seu rosto. Ele tinha um espinheiro nas mãos e eu me desviei dele quando Paulo o jogou no carrinho de mão. — Você não quer passar o resto da vida limpando a casa dos outros, quer? Você merece mais que isso.
Eu gostava de quando Paulo sorria do jeito que fazia para mim naquele momento. Ele tinha um sorriso puro e, às vezes, até parecia sábio, se é que isso existe. Aquele sorriso de uma pessoa que já viveu muito, que sofreu muito. Um sorriso que espantava todas as coisas ruins na vida.
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Jogos da Ascensão - Livro 1 da Duologia Jogos da Ascensão
RomanceO mundo de Danitria já foi dividido em camadas. Mesmo que essas teoricamente já não existam, ela e sua família ainda vivem como formigas: trabalhadores braçais, que formam a base da sociedade, destinados a servirem os membros das camadas mais altas...