ATO XV
Conforme a lança líquida se crava em Toihid, uma cascata de sensações a envolve, e pela primeira vez, ela sente algo que nunca havia experimentado antes: o medo, tão avassalador que a consome de dentro para fora, uma emoção tão estranha e poderosa que a paralisa.
Ela se vê em uma espécie de transe, onde vislumbra a imponência de sua forma original: um vasto e majestoso planeta, um gigante primordial flutuando na vastidão do espaço cósmico. Ela se lembra das estrelas cintilando em seu entorno e dos cometas que vagueavam em sua órbita. Porém, essas lembranças são extintas com uma nova percepção: uma sensação aguda de perda e vulnerabilidade que jamais sentiu antes.
Toihid reflete sobre as noções de bondade, maldade e empatia, conceitos que eram alheios à sua existência planetária. Seu papel cruel de monstro na história dos deuses, nunca foi sua culpa. Sua essência não era de ser vivo, e ela percebe a ironia cruel de sua transformação imposta pelo Universo. De uma entidade eterna e poderosa, ela foi reduzida a um ser finito, plenamente capaz de experimentar medo, dor e, o mais devastador, a mortalidade. A realidade dessa transformação, da perda de sua eternidade e força indomável para um estado de existência vulnerável, é um golpe quase insuportável para a sua recém-descoberta consciência.
Envolvida em uma nuvem de medo paralisante, Toihid se enxerga diminuída, uma mera sombra de sua grandiosidade passada. Sentindo o sangue quente e viscoso escorrer de seu ferimento enquanto a lança líquida continua a se alojar mais profundamente em seu corpo, Toihid sente o medo se transformar em desespero. A dor física da ferida é intensa, mas é o terror da morte iminente que a consome por completo. Ela percebe, com uma clareza assustadora, que a crueldade e a brutalidade que exibiu em sua forma mortal se voltaram contra ela de uma maneira que nunca poderia ter imaginado.
O silêncio que envolve a cena é sufocante, apenas interrompido pelo som suave, porém sinistro, do seu sangue caindo ao chão. Ela, com olhos arregalados, levanta um olhar de espanto e dor para Tanri. Seus olhos, antes cheios de fúria, agora exalam desespero. Ela tenta formular palavras, talvez maldições ou súplicas, mas o sangue que escorre de sua boca torna sua fala ininteligível.
— Eu... só... — consegue murmurar, sua voz fraca e trêmula. Ela se esforça para erguer o corpo, mas suas forças a traem, e ela cai de joelhos, uma figura trágica e desamparada. Com mãos trêmulas e desesperadas, ela toca o cabo da lança, ainda firmemente cravada em seu ser. — ...queria... — Ela luta para dar voz ao seu último desejo, um desejo simples, porém agora inatingível.
Com um último suspiro, ela tomba de bruços, a vida se esvaindo junto com o sangue que forma uma poça ao seu redor. — ...orbitar o Sol. — Estas palavras finais, murmuradas com um fio de voz, ressoam com uma tristeza profunda. Toihid, uma vez um planeta majestoso, uma entidade outrora poderosa reduzida a um estado de puro terror e desespero.
No íntimo de Toihid, enquanto a vida se esvai, um sonho por sua identidade primordial e uma vida sem as complicações e crueldades que vieram com sua transformação em um ser vivo, ressurge em seu fim. Em seu coração ferido, ela anseia por retornar à sua verdadeira essência, aquela de um planeta glorioso, um titã cósmico que acalentava a vida em sua vastidão estelar.
Toihid, na pureza de seu sonho, imagina-se como um berço da vida. Desde os minúsculos microrganismos até civilizações avançadas. Ela sonha com mares vastos e profundos, florestas exuberantes que cobrem suas terras, montanhas majestosas que tocam as nuvens com seus picos nevados, e com desertos misteriosos, onde segredos antigos dormiam sob a areia quente. Ela se vê um santuário no vasto e frio vazio do espaço, um lugar onde a vida poderia prosperar e evoluir.
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As Crônicas de Marum - O Primordial
FantasyNeste fascinante épico mitológico, mergulhamos no início dos tempos, onde o Universo nasce de uma união transcendente, emergindo como uma entidade de poder e consciência absolutos. Em meio à vastidão do nada, ele enfrenta a solidão primordial, dando...