Depois de me despedir de Luke, subo degrau por degrau até o segundo andar do prédio. O caminho ainda é cansativo mesmo depois de subir e descer várias vezes ao dia.
Como eu queria que tivessem um elevador.
Destranco a porta de madeira e a tranco novamente ao passar por ela. Meu apartamento é pequeno e não faz um mês desde que me mudei para cá. Estou contanto para que o dinheiro que ganhar trabalhando no mercado dê para pagar o aluguel desse lugarzinho.
Tiro os tênis e os deixo no canto da porta para o dia seguinte. Depois desabo no sofá de tecido barato sentindo as pernas relaxar e a ardência diminuir. Fecho os olhos e repasso o dia pela minha cabeça.
Tirando o uniforme de um verde horrível e o desconforto que senti até conversar com Beth, não foi tão ruim. De acordo com Luke eu me saí bem para uma novata e fui uma das funcionárias mais fáceis que ele já treinou. Ele me contou que já teve que demitir uma garota que demorava tempo demais para descolar as sacolinhas plásticas, mas duvido que essa história seja verdade. Provavelmente ele a inventou para eu me sentir mais confiante.
Tive que abrir os olhos e saltar do sofá quando senti o sono chegando. Infelizmente eu tinha que encarar minha realidade e lavar a pilha de louça que vinha se acumulando nessa última semana. Dirijo-me até a pequena cozinha que é separada da sala por um balcão com tampo de mármore. Os azulejos verdes da parede estão desbotados pelos anos recebendo diferentes moradores e os rejuntes no chão estão encardidos. Na pia, uma pilha de pratos e copos a preenchiam.
Já se passa da meia noite quando termino a tarefa. Agora as únicas luzes acesas na cidade eram as dos postes e os carros não passavam mais na rua. O silêncio inundava o pequeno apartamento e o restante do mundo. O suor grudava meu cabelo na testa e a roupa no corpo.
Pela primeira vez depois de horas me livro do uniforme e desmancho o coque deixando os longos cabelos sujos caírem em ondas sobre o ombro. É um alivio quando a água quente jorra sobre meu corpo relaxando os músculos. Como dito, não me imaginava trabalhando em um mercado enquanto meu pai tem um dos hotéis mais famosos da cidade.
Ainda me lembro de quando o décimo andar do hotel foi inaugurado. Eu tinha uns quatro anos na época, mas o evento ficou guardado na memória. Deve ser porque foi um dos poucos momentos que tive com o meu pai. Lembro-me que o prefeito apareceu no evento com sua esposa e filhos adolescentes. Meu pai me apresentou e pude tirar uma foto com eles em frente ao grande bolo que tínhamos encomendado para a ocasião. Também me lembro de papai me ajudando a roubar alguns doces para mim antes de cortarem a fita e iniciarem os comes e bebes. Mesmo sendo dono da festa, mamãe nunca aprovaria isso, então foi uma grande aventura na época.
Não consigo esconder um sorriso que surge nos meus lábios ao me lembrar da pequena Jessie Brodie. Doce, com cabelos longos e penteados pela minha mãe todas as manhãs e uma curiosidade imensa. Meu peito se aperta com as pequenas lembranças boas da minha infância e me sufoco com as ruins que preencheram boa parte da minha vida depois dos meus setes anos.
Por essa você não esperava pequena Jessie.
A voz dele gira na minha mente e desligo o chuveiro imediatamente o arrancando dos pensamentos.
Você não está mais lá Jessie. Sua vida seguiu em frente.
Repito essas palavras até cair no sono. Até ele ser enterrado novamente em sua cova. O buraco precisa ficar fundo o suficiente para que não volte mais para a superfície.
*
Faz cerca de uma semana que trabalho no mercado. Posso dizer que me adaptei bem ao meu ambiente de trabalho. E quando digo isso me refiro a embalar produtos na velocidade de um profissional. Meus dedos se tornaram mais ágeis e abria uma sacolinha atrás da outra em um piscar de olhos, e quando ficava difícil uma dose de saliva ajudava.
Por outro lado eu ainda não fiz muitos amigos. Na verdade, fiz um total de zero amigos. Está bem, Luke é meu amigo, mas o conheço a tanto tempo que podemos ser considerados irmãos. Não posso dizer que o conheci no mercado, pois seria uma grande mentira e eu estaria ignorando todas as nossas aventuras.
Hoje é o começo de uma nova semana. Depois de um sábado e um domingo largada no sofá comendo as besteiras que havia pegado no estoque de produtos que estavam perto do vencimento (é impossível trabalhar em um mercado e manter uma dieta) estava na hora de voltar ao ritmo.
Vesti meu uniforme amassado e penteei os cabelos marrons prendendo-os em um rabo atrás da cabeça. Cheguei pontualmente no trabalho e encontrei Bethany sentada em seu caixa de sempre, lixando as unhas (será que elas cresciam tão rápido a ponto de precisarem ser lixadas a todo o momento?) e com os cabelos loiros presos em uma trança.
-Olá Beth. Como está?- Ela larga a lixa rapidamente em seu esconderijo e olha para mim. Ela parece ficar surpresa ao ver quem está conversando com ela após uma semana de apenas cumprimentos e resmungos sobre a hora não passar durante a tarde.
-Você me assustou Jessie. Achei que fosse Luke ou, pior, o dono- Diz relaxando a postura e voltando a lixar as unhas.
-Desculpe-me. Não era minha intenção te assustar- Desvio o olhar para a janela onde os raios de sol de pós-almoço entravam fazendo os olhos lacrimejarem com seu brilho- Está um belo dia, não acha?
-Estaria mais belo se eu não tivesse que passar o dia todo sentada nessa cadeira passando produtos- Seu rosto se contorce em uma careta discreta ao perceber que uma mulher se aproximava com o carrinho lotado- Falando nisso...
-Sabe, eu estive pensando Beth- Digo enquanto me preparo para embalar a mercadoria- Nós passamos muito tempo juntas e não sabemos nada uma da outra.
-Realmente- Diz passando uma lata de sardinhas- Mas por que isso agora?
-Por que a gente podia tornar as tardes menos entediantes se descobríssemos mais uma da outra.
Seus lábios rosados ficam entreabertos como se pensasse no assunto, mas tenho duvidas se está pensando ou se está concentrava em ler os códigos minúsculos do pacote de fraudas. Pela primeira vez reparo que Beth tem uma tatuagem logo atrás da orelha, escondida atrás da cabeça e que só é possível ver quando se inclina para frente como nesse momento. Uma pequena coroa de diamantes azuis como seus olhos marcam sua pele.
Uma pontada atinge meu estômago de repente me fazendo voltar para o passado de repente.
Sou resistente como um desses diamantes pequena Jessie.
•·•·•·•·•·•·•·•·•·••·•·•·•·•·•·•·•·•·••·•·•·•·•·•·•·•
VOCÊ ESTÁ LENDO
Jessie Brodie (sáfico)
Romance❌Aviso de gatilho❌ A vida de Jessie nunca foi normal. Aos vinte e um anos Jessie Brodie tenta recomeçar a vida após uma série de traumas sofridos na infância. Ainda está fresca em sua memória a temperatura das mãos de seu tio que marcaram seu corpo...