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Demorou algumas semanas para que Marcelo sentisse falta do ursinho. Por um tempo até pensei que ele tinha esquecido e que talvez eu tivesse me livrado do seu sermão, mas quando, em um fim de tarde com as nuvens arroxeadas no horizonte e estrelas brilhantes surgindo no céu, ele veio me perguntar onde estava Bolota. Meu rosto imediatamente ferveu juntamente com meu estômago. Aquilo poderia ser meu fim?
-Está na minha cama- Respondo abaixando a cabeça e formando um arco na terra com a ponta do meu pé- Tem problema de eu brincar com ele?
-Problema nenhum, pequena Jessie- Diz e bagunça minha cabeleira castanha com suas grandes mãos e, depois, desaparece para dentro de casa.
Quando ergo a cabeça percebo que minhas mãos tremiam e meu coração bate acelerado. De acordo com a televisão essa é a sensação de estar prestes a descer em uma montanha russa. Talvez eu esteja mesmo.
Depois dessa desculpa me livrei de Marcelo por mais algumas semanas. Por conta do trabalho ele andava estressado e, para minha sorte, muito ocupado. Ele também saia no meio da noite em certos dias por conta de alguma emergência. Nessas horas, no meio da madrugada quando o barulho dos corpos se mexendo pela casa me acordava mostrando que Marcelo se aprontava para alguma emergência, eu me perguntava se era um bom médico. Deveria ser, já que era chamado com recorrência.
Também me perguntava se meu tio era realmente um cara ruim. Quando suas mãos grandes e ásperas percorriam meu corpo eu sentia dor e medo dele, mas de manhã quando me recebia com um sorriso doce e bagunçava meus cabelos eu ficava pensativa. Meu coração doía e eu acreditava que tudo aquilo era uma forma de demostrar carinho. Talvez eu tenha o interpretado errado.
-O que significa isso pequena Jessie?- Foi as palavras que fizeram meu coração parar pela segunda vez no mês. Desejei que ele fosse me perguntar algum significado de algum desenho meu que, por algum motivo, os adultos têm dificuldade para entender, mas ele estava parado na porta do quarto de brinquedo me fuzilando com seus olhos jabuticaba e com Bolota em uma das mãos.
-E-eu posso explicar- Digo dando um passo para trás no corredor na tentativa de escapar, mas dou de costas na parede- Foi um acidente.
Então passa na minha cabeça que eu não poderia dizer que o culpado por esse acidente foi Luke e não eu. Marcelo poderia pega-lo brincando inocentemente e fazer algo de ruim que nem quero imaginar.
-Eu fui pegar um dos meus ursinhos e ao subir na cama acabei pisando em Bolota e amassando-o- As lágrimas imediatamente brotam nos cantos dos meus olhos. Meu tio se aproxima se abaixa na minha frente. Seu perfume forte me envolve e sua respiração quente roça o topo da minha cabeça.
-Mentiu para mim?
-Desculpa. Pode pegar um dos meus ursinhos para substituir esse.
Sua respiração fica mais pesada e uns de seus dedos grossos levam uma mecha de cabelo cor de chocolate para trás da minha orelha. Depois eles pousam levemente em meu pulso.
-Acidentes acontecem, não é mesmo?- Ele se levanta ainda segurando meu pulso e me puxa levemente em direção ao seu quarto- Mas às vezes eles podem ser evitados. Que tal brincarmos para esquecermos tudo isso?
Ele diz de uma forma tão gentil que fazem meus ossos arrepiar mesmo nãosendo possível. Por alguns segundos acredito que realmente esteja me levandopara brincar em seu quarto com meus queridos brinquedos. Até consigo visualizarMarcelo rindo enquanto escova os cabelos de alguma boneca com um pente deplástico. Por alguns segundos me sinto ansiosa para chegarmos logo emergulharmos em um mundo de fantasia, mas esse mundo estoura assim que elefecha a porta do quarto e levanta meu vestido.
*
Dessa vez suas mãos marcaram minha pele permanentemente.
Marcelo saiu para o hospital assim que terminou o trabalho em seu quarto. Logo em seguida mamãe me pediu ajuda na cozinha para preparar um bolo, então tive que limpar minhas lágrimas e me dirigir até a cozinha onde ela começava a separar os ingredientes para a massa.
Eu me sentia péssima e não queria olhar ou conversar com mamãe. Ainda o sentia por toda parte e só queria tomar um banho para ver se aquela sensação ia embora pelo ralo.
-Pegue ovos na geladeira filha- Pede sem olhar para mim e agradeço por isso.
Arrasto-me até a geladeira e colho três ovos frios e brancos. Deixo-os sobre a pia ao lado de mamãe e enxugo novamente as lágrimas que brotavam nos meus olhos. Mamãe ouve minhas fungadas e se volta para mim.
-Jessie por que está tão quieta?
Seus olhos azuis com o oceano em um dia de sol pousam preocupados em meu rosto. Ela repara nas lágrimas prestes a escorrer pela minha bochecha e as limpa com a ponta dos dedos.
-Jessie meu amor o que aconteceu?
Quando abro a boca apenas soluços saem. Eles ecoam pela cozinha tomada por silêncio e se perdem no mundo lá fora. Seu polegar acaricia meu rosto na tentativa de acalmar meu choro que parecia ser sem motivo até encontrar o sangue que escorria dolorosamente pelas minhas pernas.
Os olhos de mamãe imediatamente ganham um tom escuro e cheio de medo. Queria dizer a ela que estava tudo bem para que o azul oceano voltasse aos seus olhos, mas estava claro que o mundo desabara.
-Filha... -Ela me puxa para seus braços reconfortantes e acaricia minha nuca acolhendo meu choro.
Gostaria muito de ter uma desculpa na ponta da língua para justificar todo aquele sangue para não ter que vê-la sofrer, mas dessa vez não tinha saída.
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Jessie Brodie (sáfico)
Romansa❌Aviso de gatilho❌ A vida de Jessie nunca foi normal. Aos vinte e um anos Jessie Brodie tenta recomeçar a vida após uma série de traumas sofridos na infância. Ainda está fresca em sua memória a temperatura das mãos de seu tio que marcaram seu corpo...