Capítulo 19

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"O riso pode esconder o coração aflito,
mas, quando a alegria se extingue, a dor permanece."
Provérbios 14:13

Não sou um especialista em reconhecer pessoas apaixonadas e nem nada, mas dá para perceber o quanto aquele garoto está a fim da Fernanda. O jeito empolgado com que ele fala, o sorriso enorme que não sai do seu rosto, os movimentos que ele faz... Esse mix de coisas forma um enorme outdoor, no meio da testa dele, que diz que ele está muito a fim dela.

E, parando para pensar, esse jeito que a Fernanda tem, de ser um pouco durona, insensível a flertes e imune a cantadas pode estar relacionado a isso. Não tem como ser outra coisa. Todas as garotas praticamente pedem para ficar comigo, mas quando eu pedi para dar um beijo de despedida em sua bochecha, a Fernanda disse que não. Ela, com certeza tem namorado. Ou, no mínimo, gosta dele.

Chego um pouco mais para o lado, na tentativa de enxergar o rosto da garota, mas não consigo, pois ela está de costas para mim. Ainda assim consigo perceber, pelo modo como ela gesticula as mãos, que a conversa está boa.

Continuo analisando os dois até que o rapaz, que deve ter uns dezenove anos e mais ou menos a minha altura, se inclina um pouco para frente e estende a mão, colocando uma mecha do cabelo da garota para trás de sua orelha.

Ah, não. Eu não vim aqui à toa. Não acredito que fiz de tudo para me aproximar dela para, no final, perceber que ela namora. E o cara ainda é esquisito.

Dou um passo à frente, arrumando coragem para interromper a conversa dos dois e mostrar que estou aqui, como havia prometido. Ainda que tenha que ouvir "João Pedro, esse aqui é o meu namorado", mas antes que eu prossiga, o Lucas me chama.

— A Letícia acabou de me ligar, falando que ela e meu pai já estão no estacionamento, nos esperando — fala, um pouco irritado.

Provavelmente está chateado porque sua irmã ligou no meio de uma conversa na moral com a Vitória.

Dou uma olhada para trás e o casal continua conversando, então desisto mostrar à Fernanda que estou aqui e sigo meu amigo em direção ao estacionamento. Entramos em um outro compartimento do prédio da igreja e seguimos por um largo corredor de paredes brancas, que exibe quadros de fotos e avisos. Sigo-o até virarmos e um novo corredor, onde, no final, há uma saída. Uma placa pendurada no alto indica que ali é o estacionamento.

— Caramba! Esqueci meu celular com a Vitória! — meu amigo para bruscamente.

— Como é que você esqueceu o celular com ela? — pergunto, mas ele não me responde. Ao invés disso, dá meia volta e corre, depois de dizer que era só eu continuar andando que encontraria o estacionamento.

Sigo o caminho sozinho. Atravesso o portal e desço dois degraus, parando no chão do estacionamento, que é de paralelepípedo.

— Ai, ai, ai, ai, ai... — Escuto, mas antes que eu possa me virar para ver o que está acontecendo, sinto um leve baque em minhas costas.

— Me desculpa — ouço a voz da Fernanda, que está apoiada em minhas costas. — Só, por favor, não se vira, senão eu vou cair.

— A saudade estava tão grande que você veio logo me dar um abraço? – implico.

— Que abraço! – ela estala a língua em sinal de reprovação.

Olho por sobre os ombros e a vejo apoiada em mim enquanto apenas um pé está repousado sobre o chão.

— Hum... Não sabia que tinha virado Saci.

— Para, João Pedro! – Ela bate em mim com a mão que está livre — Você precisa me ajudar. Eu vim correndo para falar com a Letícia antes de ela ir embora, aí quando cheguei aqui, nesse chão de paralelepípedo, meu salto prendeu e, se você não estivesse na minha frente, eu ia cair de cara no chão — explica. — Agora você poderia, por gentileza, me ajudar a ir até a outra sandália sem eu ter que encostar o pé no chão?

— Qual é o problema de encostar o pé no chão?

— Eu tenho agonia. Gosto do meu pé limpo na hora de calçar a sandália, e se eu pisar no chão vai ficar sujo.

— Que frescura.

— Para, estou falando sério!

— Mas é um bebê, mesmo... — resmungo e ela reclama.

Ela devia era cair em cima do namorado dela. Espero que ele não apareça do nada e ache que estou dando em cima dela. Só seria mais um problema para mim.

Peço para a Fernanda não se apoiar mais em minhas costas, mas sim em meu ombro. Então passo um braço por cima dos seus ombros e tento andar com ela até onde sua sandália está presa. Embora o calçado não esteja longe, a agonia que ela tem de encostar seu pé no chão sujo lhe obriga a praticamente pular.

— Pô! Isso aqui é uma salto ou um precipício? – pergunto, tentando me abaixar sem que ela se desequilibre.

O negócio tem quase um quarto do tamanho dela, como é que ela consegue ficar em cima dessa coisa?

— Ah, nem é tão alta assim.

Pego a sandália do chão e me levanto cuidadosamente. Depois, com a garota ainda se apoiando no meu ombro, me viro, ficando frente a frente com ela e agacho, tentando colocar o calçado em seu pé.

— Pronto, Cinderela – levanto quando ela fica em pé sem precisar da minha ajuda.

A Fernanda não está como nos outros dias. Apesar de seu brilho costumeiro, ela não está vestida como de costume, na verdade, usa um vestido azul meio rodado na parte da saia, que destaca o brilho de seus olhos negros e intensos. Além disso, seu cabelo está solto, caindo sobre os ombros, e não preso como normalmente fica.

— Muito obrigada. Sério mesmo, JP.

Tantos apelidos e ela me vem com JP?

— Não vem me chamar de "JP", não. Eu vou te chamar de Bisnaguinha.

Ela abre a boca, surpresa com este novo apelido que acabei de inventar.

— Você não teria coragem

— Claro que teria... Bisnaguinha — sorrio ao provocá-la.

— Te achei! — O namorado dela aparece, meio ofegante.

O observo vir até nós e a Fernanda se vira para olhá-lo.

— Ah, então quer dizer que esse é o seu apelido? Bisnaguinha? – ele para quase do meu lado.

Cerro os olhos, desconfiado. Isso não parece uma pergunta que um namorado faria para sua namorada. Eles não são um casal.

— Não – a garota se apressa em dizer, balançando as mãos, como se pedisse para ele tirar isso da cabeça.

— Sim, esse é o apelido dela... — sorrio.

— Ah! Então vou te chamar assim a partir de hoje.

— Na verdade, só eu poso chamá-la assim — me apresso em dizer.

Acabei de inventar este apelido e a Fernanda evidentemente não gostou. Não vou deixar que este cara a chame de uma coisa que ela não gosta. Eu falo porque sei que ela vai levar na brincadeira, mas não sei se o mesmo aconteceria se ele a chamasse assim.

O rapaz abre a boca e a fecha, sem saber o que falar. Enquanto isso, Fernanda me olha com os olhos semicerrados, incrédula, como se quisesse dizer "então você pode me irritar e ele não?". Apenas lhe lanço uma piscadela como resposta, fazendo com que seus olhos revirem antes de se virar para o outro, dizer que eu sou chato e nos apresentar

Ela me identifica como um "amigo" (pelo menos já avancei nisso; agora sou seu amigo), já o outro, diz que é seu "amigo da igreja", ou seja, zero chances de ele ser seu namorado ou um quase-namorado. Está na cara que é um amor unilateral, onde só ele gosta dela, e espero que continue assim.

A Vida é Feita de EscolhasOnde histórias criam vida. Descubra agora