Capítulo 17

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"Embora eu tente me enganar e me iludir
Eu já não sou capaz
Nunca mais eu vou ser livre
O que eu era se partiu."
Nunca Mais – A Bela e a Fera

O médico da enfermaria do colégio perguntou o que tínhamos e, como ambos respondemos o mesmo, que estávamos com dor de cabeça, ele fez mais algumas perguntas rotineiras, deu-nos um analgésico e nos liberou.

Quando isso aconteceu, já eram duas e meia da tarde, o que significava que faltavam meia hora para eu ser liberado, então, me dispus a matar aula para conversar com a Fernanda. Não planejava isso, mas, como ela iria ficar para a aula de pré-vestibular, decidi lhe fazer companhia, já que não queria voltar para a aula de jeito nenhum. Além do mais, essa meia hora que passaríamos juntos era uma deixa para que eu conhecesse mais sobre a garota que teria que conquistar.

Só de pensar nisso, minha cabeça voltou a doer.

— Por que você insiste tanto em me fazer companhia? Você não tem aula? — cerra os olhos, desconfiando de mim.

Sentamos nos bancos de madeira que ficam no pátio externo — o pátio que fica entre a entrada e o portão principal.

Vejo suas sobrancelhas arquearem, esperando pela resposta. Abro a boca, pensando numa desculpa, mas fecho logo em seguida.

— Então... Eu prefiro não falar sobre isso — digo, por fim.

— Você não deveria matar aula — me repreende.

Não estou matando aula — minto.

— Está fazendo o quê, então? — Cruza os braços em cima da mesinha de madeira entre os bancos, convicta de que ela tem razão.

Fico em silêncio por alguns segundos, pensando no que vou falar.

— Eu... Não posso falar sobre isso — invento. — Mas então... Me fale mais sobre você, senhorita Fernanda Albuquerque.

— Alencar. Prefiro "Fernanda Alencar" — diz, olhando para os dedos das mãos. — Não tenho muito a falar sobre mim.

— Você é uma péssima pessoa para sustentar um diálogo — implico e a garota ri, me perguntando o que quero que ela diga. — Ah, sei lá. Curiosidades, manias, gostos... Quero ver se temos alguma coisa em comum.

— Bem... — olha para o alto, pensando no que falar. — Tenho dezesseis anos, mas farei aniversário daqui a alguns dias. Minha cor preferida é amarelo... Gosto de ver filmes, principalmente as animações e uma mania que tenho é decorar as falas dos personagens. Hum... Não gosto de chocolate, mas adoro um doce.

— 'Pera, 'pera, 'pera. Você não gosta de chocolate? Como assim você não gosta de chocolate?

Depois disso, acabamos entrando em uma leve discussão. Eu, defendendo que era impossível existir uma pessoa que não gostasse de chocolate, e a Fernanda argumentando que existiam muitas pessoas assim e que uma delas era ela. Mas o debate durou pouco tempo, pois logo desisti de contra-argumentar.

— O que está fazendo aqui fora, senhor Goulart? — Ouvi a voz da Caveirão atrás de mim.

Meus amigos matam aula e ela nem vê, mas quando sou eu...

— E aí, tia? — me levanto com o maior dos sorrisos no rosto e ando até ela, passando uma mão por cima de seus ombros. — Como a senhora está? Nem te vi hoje, estava até com saudades. — Deposito um beijo em sua bochecha.

— Estou muito bem. Mas não queira me enrolar, não, que sei que a aula não acabou.

Me afasto, para encará-la. Como sempre, ela me olha com aquela cara que a deixa mais parecida ainda com a Senhorita Truchbull[1].

— A aula já está acabando e, você sabe que quem termina o dever logo, pode ir embora. Como eu sou o mais rápido... — falo confiantemente.

Umpf! — desconfia. — Não dá muita ideia para esse garoto aqui, não, hein... — fala para a Fernanda.

— Que isso, tia? Quer queimar meu filme? Sabe que eu te amo, né? — Tento abraçá-la, mas ela se afasta e volta para dentro da escola.

Ela detesta abraços e é só agindo carinhosamente que consigo me livrar dela. Apesar de achar que ela tem alguma coisa comigo, pois pega muito no meu pé, sei que gosta de mim. E aliás, quem não gosta?

— "Tia"? — Fernanda implica, segurando o riso.

— Ninguém sabe o nome dela e ela não imagina que todo mundo a conhece como "caveirão", então... — dou de ombros.

Continuamos a conversar por alguns minutos, até o Lucas aparecer segurando minha mochila e me dar uma bronca por não olhar as mensagens no celular. Quando vê a Fernanda, me lança um sorriso cúmplice antes de cumprimentá-la.

Meu amigo pergunta o que estávamos fazendo e respondo, acrescentando que ela é a primeira pessoa que conheço que não gosta de chocolate.

— Ah, você está assim porque ainda não sabe a comida preferida dela — ele diz, antes de começar a rir.

— Nem vem, Lucas! — faz cara de séria.

Pergunto qual é a sua comida preferida, mas a garota não me responde.

— Quando se trata de comida preferida, todo mundo responde um prato, né? Tipo feijoada, lasanha, como eu; macarrão, como você, mas a Fernanda... — Lucas volta a rir.

— Vocês são chatos! Só porque quando ele perguntou minha comida preferida eu disse que era bisnaguinha — ela faz bico e começo a rir junto com o Lucas.

— Bisnaguinha nem é comida. — digo, ainda rindo.

Impaciente, ela se levanta do banco, pega sua mochila e anda a passos firmes em direção à entrada da escola, que a esse horário, já está envolta por alunos.

Enquanto o Lucas continua rindo sem parar, corro atrás dela e, quando a alcanço, seguro sua mão, fazendo-a parar.

— Não sabia que você era tão estressadinha — sorrio.

— Não sou estressadinha. Minha aula vai começar agora — fala sem me olhar.

— Tá bom, então. Mas... não fica irritada não — digo e a Fernanda finalmente me olha. — A gente só achou engraçado sua comida preferida. Mas se você não gosta... vamos parar de te zoar. — Levanto as mãos, como se tivesse me rendido.

Ela não parece estar muito irritada, mas ainda está séria.

Tento pensar em algo que a fará sorrir de novo.

— Hm... Depois você me passa o endereço da sua igreja. Vou tentar ir lá.

Um quase sorriso aparece em seu rosto e seus olhos parecem brilhar.

— Sério?

— Sério.

[1] Personagem do filme Matilda (1997).

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