"Você me pergunta sobre como foi meu dia
E eu te respondo somente a meia noite
Mas pelo menos ofereço a sinceridade
De quem está caindo e eu estou"Câncer.
Câncer de pulmão, que agora se espalhava como uma erva daninha pelo fígado. Um mês de expectativa de vida, mesmo com todos os tratamentos caros que o salário novo de Anita iria cobrir.
Há um vazio no peito da loira que não era estranho, sempre que sua mãe vinha à tona, isso era tudo que ela sentia: vazio. Um sabor azedo na boca ao lembrar de qualquer memória em que a mulher mais velha estivesse.
Anita Berlinger gostava de ler sobre estoicismo, acreditava que a prática ajudaria a levar sua vida difícil com menos danos emocionais. Um estoicista autêntico não pode ser mau caráter, porque a essência do estoicismo é justamente a busca pela virtude e pelo bom caráter. Mas Anita fingia não lembrar dessa parte, adotando o autocontrole e a moderação, evitando ações e emoções, com uma disciplina pontual.
Sua parte amoral seguia os princípios que leu em Maquiavel, ela não poderia ser da polícia se não soubesse planejar estratégias, manipular poder e tomar medidas drásticas por necessidade.
Eram filosofias distintas, mas que resultaram em seu comportamento atual. Anita tinha uma política que ela chamava de "anticoitadismo", o que a fazia repreender qualquer coisa que parecesse minimamente com um trauma. Em sua mente conturbada, ela não era uma vítima. Ela havia se tornado bem-sucedida, nunca havia tentado nada contra sua própria vida e tinha, atualmente, uma boa relação com sexo. Seu temperamento difícil? Era apenas de sua personalidade. A dificuldade de se relacionar afetivamente? Podia ser de seu signo.
No fundo Berlinger sabe que tudo isso tem raiz em algo que Freud ficaria feliz em estudar, mas ela se recusava a deixar um psicanalista destrinchar seus problemas maternos e seu abandono paternal.
Anita não sabe que emoção se permitir ter ao receber a notícia que a mãe irá morrer. A culpa de quem foi criada no catolicismo não a deixa se sentir aliviada e feliz, mas ela está. Como se por estar viva, ela ainda fosse uma porta aberta que Anita gostaria de ter passado a chave e jogado fora a muitos anos.
E ela tentou, internando a mãe em uma clínica de reabilitação para lidar com seus problemas com bebida e ópios. Parte do seu salário caindo automaticamente na conta do lugar durante anos. Nenhuma visita, ligações de praxe das enfermeiras e um silêncio brutal entre as duas.
A loira acha que sequer lembra direito das feições da mãe e já tem certeza que esqueceu o tom da sua voz. E é bom, pois todas suas memórias em relação a mãe lhe direcionando a palavra eram aterrorizantes.
Mãe, que palavra tosca. Aquela mulher não era uma mãe. Não as que ela assiste nos filmes, lê nos livros e escuta seus colegas de trabalho falarem sobre.
Não havia carinho, não havia conforto, não havia segurança.
Não havia aquele prato favorito que só a mãe dela soubesse fazer. Não havia fugas para a cama em meio a uma noite chuvosa. Não havia lembranças boas ao sentir o perfume que a mulher usava.
Mas havia a memória vivida do destilado favorito que ela bebia dia após dia. Há a lembrança do cheiro de cigarro misturado com perfume doce pela casa. Há o som de gritos, lágrimas e maldições pôr o homem que era seu pai ter lhes deixado. Havia a memória de uma geladeira quase vazia, de mãos truculentas escovando sua pele e um sorriso ameaçador de um rosto masculino que ela não conhecia.
Ao se lembrar, ela sente algo se juntar em sua garganta, um enjoo terrível lhe assombrando ao recordar de cenas que ela gostaria que a ciência já tivesse descoberto uma forma de apagar. Mas ela esperava que a morte de sua progenitora levasse isso, que tudo o que ela causou fosse enterrado junto ao seu corpo 7 palmos abaixo do chão.
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Teto de Vidro
FanfictionApós se envolverem por uma noite, Anita e Verônica prometeram que tudo não passou de uma experiência. Todavia, é difícil resistir a adrenalina e diversão que somente pessoas tão opostas poderiam se provocar. Ao se verem envolvidas em um caso incomu...