Não sei dançar

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"E tudo que eu posso te dar
É solidão com vista pro mar
Ou outra coisa prá lembrar
Se você quiser
Eu posso tentar"


Os corredores gelados e as lâmpadas brancas irritam os olhos de Anita, que tem vontade de pôr de volta os óculos escuros. O cheiro nauseante atinge seus sentidos e ela tem vontade de vomitar. Engolindo em seco, ela dá um sorriso franco a uma enfermeira que passa por ela, a cumprimentando.

Ela está em um câncer center, um hospital especializado no tratamento daquela doença nociva que tomava sua mãe. Era o hospital que sua mãe estava internada, em tratamento de quimioterapia e cuidados paliativos. Segundo o que a enfermeira lhe informou em ligação na noite anterior, ela mal conseguia levantar-se, vomitando o tempo todo e sentindo dores terríveis.

Anita não sente pena ou qualquer coisa parecida, mas algum sentimento desconhecido a faz tirar a manhã de folga e ir até lá. Ela não tem vontade de ver a mãe, mas sente que precisa encerrar algo antes que ela se parta.

A parede de concreto vai até a altura da cintura, seguida por placas de vidro límpidas que chegam até o teto. Ainda do corredor, Anita vê poltronas confortáveis, diversos fios e monitores. A maioria ali são mulheres, com os cabelos ralos ou totalmente carecas e olheiras profundas.

Sua mãe está entre elas. A pele de Carmen está amarelada, como paredes da casa de alguém que fuma dia após dia durante anos. Seus olhos verdes-azulados tão parecidos com os de Anita estão opacos, quase sem vida. Sua expressão é cansada, ela parece exausta fisicamente, mas também emocionalmente. O cabelo loiro está ralo e sem vida, diversas agulhas pinicam a pele pálida e ela mal consegue levantar o copo plástico de água até a boca.

É uma cena triste, extremamente deprimente. Mas Anita não sente nada além de um enjoo forte ao ver pessoalmente o rosto que lhe assombra a anos. Não há pena, remorso ou comoção.

- Você vai entrar para vê-la? – Uma enfermeira pergunta atrás da loira, que se vira assustada.

- Ham? Não sei. – Anita responde rapidamente, antes de voltar seu olhar para a mãe.

Dessa vez, Carmen não está mais focada no copo d'agua em suas mãos frágeis, mas em Anita. O olhar pesado da mulher encontra o da filha, dois oceanos tempestuosos que se chocam, mas não se misturam. Ela não sorri, nem parece surpresa. A mesma expressão estoica que Anita lembra ter crescido vendo.

De repente, ela não é mais a imponente delegada civil que carrega um revólver na bolsa e tem o rosto cortado por ter entrado em luta corporal com um homem com o dobro de seu tamanho. Ela é a Anita de 10 anos, tremendo de medo no quarto, com o cabelo cheirando a cigarro e desesperada em ouvir qualquer palavra doce da mãe. Desesperada por seu afeto, por um sorriso, por um olhar amoroso.

Mas ela não o recebe o sorriso, nem o olhar amoroso, até mesmo quando sua mãe está prestes a morrer.

O jato quente que sobe por sua garganta a faz trocar os pés e correr rapidamente pelo corredor, deixando a enfermeira que estava próxima de si confusa. Sua mão direita mela ao segurar os fluidos que querem escapar de sua garganta e ela consegue ver a palavra "banheiro" antes de se enfiar em uma porta branca, correndo até a pia. Seu café da manhã desce pelo ralo, deixando um gosto azedo em sua boca. Sua respiração está alarmada e ela sente as mãos pinicarem em ansiedade.

Por que, depois de tantos anos, ela continua sentido o mesmo? Por que esse sentimento não morre e a deixa em paz? Sua mãe vai ser um fantasma lhe atormentando até o fim da vida?

A pior coisa de ter uma infância ferrada, é que você pode conquistar muitas coisas: amores, dinheiro, prestígio. Mas nunca irá conseguir dar a criança que você foi uma vida feliz. Não há como voltar ao passado e cuidar do ser minúsculo e frágil que ela era. Anita nunca mais teve uma geladeira vazia, medo de homens estranhos e realizou a maioria de seus sonhos materiais, porém as crises de choro que deixavam seu rosto pequeno vermelho nunca seriam mudadas.

Teto de VidroOnde histórias criam vida. Descubra agora