Carta 4: Dia das mães

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                                                                                                                                                           10 de maio de 2015

Querida mãe, este é o segundo ano seguido que me nego a lhe dar um presente neste dia. Sim, eu estou fazendo isso como forma de punição por ter jogado em mim a culpa da morte da Fê. Não é que eu não a considere minha mãe, mesmo não sendo biologicamente, assim como o papai não o é. É porque a dor é maior do que aparenta ser. Porque a senhora passou dois anos e dois meses afirmando que preferia que tivesse sido eu a ter morrido em algum acidente. Algumas vezes diretamente, outras de maneira indireta. Isso me machucou demais.

Sei que mãe não é aquela que dá à luz, mas aquela que cria. A senhora me criou muito bem, mas tem colocado um fardo em minhas costas que é pesado demais para mim. Desde então, tenho me perguntado quem é minha mãe, como ela me trataria, como ela seria fisicamente, quantos anos ela teria e se sentiria orgulho de mim, se me amaria como um dia a senhora me amou, ou mais do que isso. São perguntas inevitáveis para mim agora.

Estou mais um fim de semana em casa, sozinho. Afinal, como ocorre todo ano, vocês foram para a casa da vovó e eu decidi não ir, mais uma vez. Não suportaria aquela hipocrisia toda. A senhora sempre disse que só vai por causa do papai e ele só o faz porque prometeu ao pai dele, no leito de morte, que não deixaria de visitar a mãe nas datas consideradas especiais. No fundo eu sei que ele não iria se não fosse isso, resmunga todos os anos, "Essa maldita promessa". Nunca entendi os motivos dele, mas nem sei se quero entender. Como alguém pode não gostar da própria mãe?

Agora fico pensando, como poderia eu não amar a senhora? Eu a amo, apesar de tudo, eu a amo e deve ser por isso que a dor de ter sido desprezado por dois anos me causou uma ferida difícil de cicatrizar. Sei que depois que se acertou com o papai a senhora tem tentado se desculpar, do seu jeito, sem falar muito, sem dizer diretamente, mas tem tentado. Só que eu ainda estou com a ferida aberta. Penso que se as ofensas e injurias foram ditas, porque o pedido de perdão não o pode ser?

Observo os jovens da minha idade ou menos, o quanto são amados e ainda assim retribuem o amor de suas mães com desprezo, palavras duras, brutalidades, ignorâncias e rebeldias ridículas em nome de uma "liberdade". Quantos tornam seus pais em escravos e os obrigam a suportar todo o tipo de humilhação.

Quanto a mim, quero apenas dizer que te amo, que apesar de tudo, te perdoo e sei que um dia abrirá seu coração para me pedir perdão, verdadeiramente. Quando sua ferida sarar, irá me ajudar a sarar a minha. Feliz dia das mães!

Após escrever esta carta na manhã de domingo, desci para colocá-la dentro da caixa de biscoitos junto às demais. Ao chegar no jardim, notei que alguma coisa estava diferente. A estátua de Nossa Senhora parecia estar levemente numa posição um pouco mais voltada para a direita. Olhei em volta e não havia ninguém. Afastei a dúvida que rondava minha mente e empurrei a estátua, recolhi a caixa, olhei dentro, as cartas estavam lá e pensei que, após terminar esse diário, quando me cansar dele, posso coloca-lo lá também. Uma coisa era certa, se ele não estava fazendo bem, mal também não estava fazendo. Para mim, escrever os acontecidos num diário tornou-se um hobby, um ritual.

Guardei a carta, recoloquei a estátua de volta no local e marquei bem a maneira como havia deixado ela. Será que minha mãe descobriu meu segredo? De qualquer maneira, era bom ficar de olho. Subi para o meu quarto e abri as cortinas. Fazia tempo que eu não olhava pela janela e ao fazer isso, notei que tinha gente na casa da frente.

Fiquei tão surpreso que nem sequer disfarcei, fiquei observando a movimentação. As janelas estavam abertas, uma senhora estava passando aspirador de pó no andar de cima, no debaixo aparentemente não havia ninguém. A julgar pelas roupas, a senhora não era moradora da casa, mas faxineira. Peguei meus binóculos para ver mais de perto. Realmente, ela usava um uniforme da empresa Cleanup.

Movido pela curiosidade e por um impulso quase incontrolável, desci e fui até a casa. Apertei a campainha e aguardei, pensando no que eu diria a quem atendesse. Para minha surpresa, demorou um pouco para isso acontecer. Quando a porta se abriu, era a senhora que estava no andar de cima.

— Olá! Desculpe-me incomodar, a senhora poderia chamar a Dona Maria, por favor? – não sei porque falei isso, mas foi a primeira coisa que me veio à cabeça.

— Não tem ninguém em casa, meu jovem. Como pode ver, estou trabalhando – respondeu de maneira amigável.

— A senhora sabe me dizer a que horas ela volta? – insisti sorrindo sem graça.

— Escute, estou quase terminando meu trabalho e você está me atrasando. Além disso, creio que não conheça a pessoa que mora nessa casa. Se conhecesse, saberia que o nome dela não é esse e que ela nunca fica em casa nos fins de semana. Especialmente no dia das mães. Passar bem!

Ela fechou a porta na minha cara sem nenhuma cerimônia. Voltei para casa e anotei em meu bloco de notas.

*Nunca fica em casa aos fins de semana.

* É uma mulher e não se chama Maria.

Peguei novamente meus binóculos e aproveitei que as janelas estavam abertas para observar melhor as coisas dentro da casa. O quarto tinha uma cama de casal, um guarda roupas enorme, um cabideiro e uma penteadeira com um espelho. Seria uma pessoa casada? A senhora não mencionou a palavra pessoa no plural, isso significa que é uma mulher e vive sozinha, a penteadeira confirma que é mulher. Nenhum homem teria uma penteadeira no quarto. Além disso os motivos estampados no jogo de cama eram femininos.

Olhando para o andar de baixo, via-se o sofá e a televisão, do lado esquerdo uma estante e alguns bibelôs. Livros sobre uma mesa de centro. Não dava para ver direito, mas eram livros de estudo, pelo título, não pareciam de literatura. Um deles era: O animal social. O outro, não pude identificar, pois assim que me viu na sacada do meu quarto, a senhora que estava limpando a casa fechou as cortinas.

O interfone tocou, fui atender. Era da gestão do condomínio. Alertou a mim que eu estava invadindo a privacidade da casa vizinha ao olhar para lá com um binóculo. É verdade que nenhuma das casas no condomínio tinha muro na entrada. Era um jardim que culminava na porta de entrada da casa e garagem. Logo, a fachada da casa ficava toda exposta. Por isso as pessoas não deixavam as cortinas abertas, pois, por mais que tentemos, sempre acabamos olhando para dentro das casas uns dos outros. Por ser condomínio fechado, as casas têm um padrão a ser seguido. Todas precisam ter janelas na frente da casa, isso não pode ser mudado, independentemente do tamanho da casa e se é térrea ou sobrado. Voltei à minha rotina de fim de semana, assistir filmes e séries, comer, jogar e dormir.  



* imagem por : https://pt.lovepik.com/image-380496016/mother-and-son-mothers-day-cartoon-illustration-style-romantic-warm.html

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