Carta 2: desespero

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29 de março de 2015

Oi mãe, oi pai. Se já leram a carta sobre solidão, espero que entendam que depois de eu ter descoberto que eu não era filho biológico de vocês, e nem era esse o problema, o problema foi eu me sentir traído e daí para frente achar que não me amavam de verdade, ou que eu não poderia confiar mais em vocês. Sexta-feira, uma pergunta da sessão de terapia me fez relembrar aquele fatídico natal no qual recebemos a visita da tia Maria Fernanda. Tenho certeza que nenhum dos dois se esqueceu, afinal, foi por causa daquele natal que nunca mais comemoramos natal em casa. Lembro-me do silêncio da mamãe e o que ocorreu no dia seguinte. Sei que se lembram, mas colocarei tudo aqui, para que entendam o desespero que invadiu o coração da Fernanda e também o meu.

Fernanda foi para o meu quarto, uma vez que o quarto dela estava ocupado pelos nossos primos, filhos do tio Tomás e da tia Valéria que estavam em um dos quartos da edícula, a tia Renata e o namorado dela estavam no outro quarto. A tia Maria Fernanda estava no quarto do andar de baixo.

No meu quarto, ficamos em silêncio tentando ouvir a conversa de vocês dois, mas não havia nenhuma voz vinda de lá. Fernanda e eu sussurrávamos com medo de que nos ouvissem.

— Você entendeu o que aconteceu lá embaixo? – perguntei ainda espantado com tudo.

— Você não? – Fernanda respondeu com raiva.

— Mas não foi a mamãe quem chamou o papai pra dentro?

— Parece que não – respondeu Fernanda ainda pensativa – Pelo que entendi, a mamãe estava dormindo no quarto debaixo enquanto conversava com a tia Maria. Depois que a mamãe domiu ela aproveitou, vestiu uma das roupas da mamãe e veio chamar o papai, depois, colocou outra roupa daquelas novas que a mamãe comprou para provocar o papai e veio chamá-lo vestida com ela.

— Desde quando a mamãe usa aquele tipo de roupa?

— Nossa, Alê, você é mesmo muito ingênuo – ela pareceu irritada – Não me admira que ainda não tenha arrumado uma namorada. A mamãe me chamou para comprar umas roupas mais ousadas para ela usar de vez em quando para o papai, para dar uma esquentada com ele.

— Não precisa me contar isso... Eu é quem tenho que usar fones de ouvido quando os dois começam.

— Como ela pôde fazer isso com a própria irmã? Que vontade de quebrar a cara dela – Fernanda esmurrava o travesseiro enquanto dizia isso.

O dia amanheceu rápido e ouvimos quando a senhora acordou todo mundo e pediu gentilmente que fossem embora, porque não estava se sentindo bem. Todos se arrumaram e ninguém ousou perguntar o que havia acontecido. Nossa família conhecia muito bem a senhora. Sabíamos que tinha um jeito de falar que deixava claro quando as coisas eram graves. Quanto mais baixo e educadamente a senhora fala, com mais raiva está e mais séria era a situação. Além disso, a senhora nunca dava explicações e nem se importava com as especulações da família.

Nossa tia Maria Fernanda já estava com as malas prontas e saiu sorrindo e se despedindo de todos como se nada tivesse acontecido. Eu fiquei sem saber se ela não sabia que a senhora havia descoberto tudo ou se era apenas muito cínica e má a ponto de não se importar com nada.

— Pode deixar que eu levo você até a rodoviária – a senhora falou para ela segurando-a pelo braço.

— Não precisa, é caminho nosso – disse o namorado da nossa prima.

— Eu faço questão – a senhora respondeu – Quero passar mais um tempo com minha irmã. Afinal, não nos veremos tão breve.

Todos saíram e foram embora, a senhora colocou as malas da tia Maria no carro, nosso pai estava fazendo café e nós ficamos sentados na sala. Não sabíamos o que viria agora e nem como foi a conversa dos dois na noite anterior, se é que houve conversa. Nosso pai parecia envergonhado e nos chamou para a mesa. Tomamos café em silêncio. A senhora chegou meia hora depois e também não disse nada.

Meu último dia de vida.Onde histórias criam vida. Descubra agora