27 de julho 2016
Olá papai, mamãe. Não sei porque ainda escrevo essas cartas, nem sei porque ainda escrevo no diário. Algumas vezes penso que vivo em uma realidade paralela, que nada do que eu faça realmente importa. Desde que refiz os exames e o médico disse que tenho depressão psicótica, confirmando aquilo que eu li no relatório dele antes de viajarmos para passar o dia das mães na casa da vovó. De lá pra cá, as coisas só pioraram.
Há coisas que não consigo compreender, uma delas é a maneira como as pessoas passam a enxergar a gente depois de um diagnóstico de doença grave, ou doença mental. Se é que o que tenho se caracteriza em uma dessas duas coisas. Para o meu pai, não. Porque desde lá ele vive repetindo que é frescura, que é falta do que fazer. Chamou o surto que tive de teatrinho para conseguir atenção. Ouvi isso tantas vezes nesses últimos dois meses, que começo a pensar que realmente seja isso, ainda que eu não consiga perceber. Para a senhora eu não sei dizer. Ora diz que compreende, ora parece duvidar. Como se eu realmente estivesse usando a situação. Estou? Não sei, não sei mais distinguir a realidade de uma ilusão criada por minha mente.
Sei que a senhora sofre, vejo isso no seu olhar, mas vejo também descrença. Não sei o que é pior, ter as ilusões ou não me lembrar de nada depois das crises, o médico diz que preciso me esforçar para me lembrar o gatilho que dispara a ilusão, mas se eu não me recordo da nada. Nada! Sei que é difícil de acreditar, mas é isso. Como ocorreu nessa última crise que resultou em mais um afastamento do trabalho. Por mais que eu revise os acontecimentos, há uma brecha na estória que não me permite entender o que aconteceu.
Após passarmos o dia das mães na casa da vovó, voltamos e retornei para o trabalho. Nada demais. Passei a seguir a dieta que o médico indicou, sem refrigerantes, sem café, sem bebidas alcoólicas, redução no consumo de açúcar, atividade física e rotina do sono. Só isso me deixou realmente entediado. Indicou um remédio, sinceramente, preferiria comer pedra. Os efeitos colaterais do remédio estão acabando comigo.
Talvez a senhora não entenda, mas a verdade é que eu não sei o que é real ou o que é inventado. A última crise, por exemplo, eu tenho certeza de que o que aconteceu foi real, só que por causa da minha situação, foi colocado na conta do delírio. Não contei para ninguém, porque sei que não acreditariam em mim. Dizem que estou com mania de perseguição, que estou exagerando e inventando coisas.
Quando retornei ao trabalho, no dia 09 de maio, fui reintegrado na equipe de vendas da Hiroko. Ela riu na minha cara. Me chamou de fracassado, disse que eu estava pagando pelo que fiz ao namorado dela e que ela nunca ia me deixar em paz enquanto trabalhasse ali. Como estávamos apenas nós dois e seria minha palavra contra a dela, não respondi nada. Então, solicitei a ela que me colocasse em outra área que não fosse vendas, porque ambos sabíamos dos meus resultados. Evito reclamar, já solicitei transferência de departamento, mas ela não aceita. Simplesmente quer me espezinhar e eu sei o motivo.
Fato é que ela sempre faz comentário maldosos direto para mim quando estamos a sós, ou cochicha coisas quando passa por mim. Não só ela, todos fazem e riem de mim pelas costas. Eu ouço os risos deles, mas quando olho novamente as pessoas não estão nem olhando para mim. Então me pergunto, a Hiroko diz ou não diz, o que diz?
Nas duas primeiras semanas quando eu estava sem os remédios eu diria que era tudo impressão minha, que era coisa da minha cabeça. Afinal, para refazer os exames eu precisava estar já há vinte dias na nova dieta. Agora, após os resultados e já tomando remédios, ainda ouço ela rindo ou me xingando baixinho.
A última crise se deu porque meu nome apareceu no painel em último lugar e ela estava lá anunciando os que haviam batido a meta e falando alto os que precisavam se esforçar mais. O mico da vez era uma seta vermelha apontando para baixo. Ela passou e colou a seta na minha baia. Isso não é nada, não deveria ser nada, mas na verdade é humilhante, é assédio moral no trabalho. Só que lá é "natural", "ninguém liga". Só que eu ligo, não deveria, mas ligo. Isso me irrita, isso não me ajuda a melhorar as vendas ou meu desempenho no trabalho.
Todos riam, riam, riam e apontavam para mim. Fechei meus olhos e tapei meus ouvidos, mas ainda assim continuava enxergando e ouvindo a todos. Depois disso, não sei o que aconteceu, acordei na enfermaria porque havia sido atropelado. Não me lembro de ter gritado com todos para se calarem, nem de ter empurrado a Hiroko, nem de ter saído correndo pelas escadas, menos ainda de ter atravessado a rua sem olhar, nem do carro batendo em mim. Só me lembro da seta sendo colada e dos risos.
De acordo com o relato das pessoas, não houve seta colada, não houve painel de resultados, ninguém estava rindo de mim. Segundo o relatório interno, as práticas descritas por mim foram banidas há mais de seis meses. Realmente, eu não havia visto nenhuma dessas coisas na primeira semana de trabalho, após ser reintegrado à equipe de vendas. Então, de onde surgiu tudo aquilo no final do dia, na segunda-feira? A resposta é, não sei.
Eu quero sumir, mamãe. Sumir. Porque se não posso confiar naquilo que ouço e vejo, vou confiar em quê? Se o mundo que vivo não é o real, onde estou vivendo quando não estou aqui?
Hoje, assim que cheguei em casa, me tranquei aqui, porque, talvez, se eu não tiver contato com ninguém, não gerarei nenhum problema. Não atrapalharei a vida de ninguém. Quando me isolei da vez anterior, realmente era como se não houvessem problemas. Então, se eu deixar de existir para o mundo externo, os problemas para o mundo externo também deixem de existir, pelo menos os causados por mim. Vou viver no meu mundo paralelo. Onde existo sozinho.
Por favor, me ignore. Aja como se eu não estivesse em casa. Cuide da Ana, ela precisa de maior atenção do que um marmanjo mimado como diz o papai. Felizmente o atropelamento não causou danos graves, fraturei um tornozelo e tive pequenas escoriações, então, não precisa ficar cuidando de mim. Acho que sei me virar sozinho. Sei que não concorda, mas andei procurando casas para alugar. Quem sabe eu morando sozinho as coisas melhoram para vocês. Não sei, não sei... Preciso acordar desse pesadelo no qual vivo.
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Meu último dia de vida.
Mystery / ThrillerAlexanderson passou um mês planejando o último dia de sua vida. Há meses havia deixado escrito em várias cartas e um diário, enterrados no quintal, suas percepções sobre a vida, suas dores, os amores não vividos. No último dia de sua vida, deixou um...