Carta 3: culpa

15 5 1
                                    


01 de abril de 2015

Oi mãe, oi pai. Sei que é doloroso relembrar todos aqueles momentos. Especialmente se lembrarmos que tudo ocorreu após o momento de briga, um momento que não poderia ser modificado, nem mesmo amenizado.

Naquela madrugada ao chegarmos ao hospital e recebermos a notícia de que ela estava na UTI e passaria por uma cirurgia arriscada. Inconformada com tudo, mamãe, a senhora falou em auto e bom som para que todos no hospital ouvissem.

— Se ela morrer, a culpa é sua, sua. Por que deixou ela sair naquele estado?

Seu dedo acusador apontava para mim e eu fiquei a imaginar que eu deveria ter ido com ela no carro. Talvez se eu a tivesse segurado, tomado a chave dela. Que tipo de irmão eu era? Nem consegui proteger minha irmã.

Quando soube da morte dela, eu sai correndo do hospital quando a senhora começou a chorar e a apontar pra mim, não soube o que fazer. Apenas sai correndo. Papai ficou abraçando-a e tentando consolar a senhora. Corri por mais de uma hora pela avenida principal, até que a chuva começou a cair e eu parei. Fiquei ali a receber a chuva no meu corpo, desejando que ela lavasse a minha culpa. Suas palavras e seu dedo em riste rodavam em minha mente. A expressão de desprezo vinda de sua face me causava uma dor insuportável.

Fiquei uma semana dormindo na rua, não tive coragem de aparecer no velório, nem mesmo no enterro. Nem a senhora e nem o papai me ligaram. Quem me ligou foi a prima Solange. Disse que eu precisava voltar pra casa, que vocês estavam preocupados, mas que não conseguiam conversar com ninguém naquele momento. Tia Valéria pegou ao celular da prima e me disse para eu deixar de bobagem e voltar para casa. Que a senhora estava arrependida do que havia dito e que estava ainda sob sedação.

Após eu passar minha localização, a prima foi me buscar. Pelo espanto da Sol, minha aparência não era das melhores, nem mesmo meu cheiro. Ao chegar em casa, tomei um banho, coloquei roupas limpas e fui vê-la no quarto. A senhora estava dormindo sob efeitos de remédios. Papai, longe de aparentar preocupação, apenas me cumprimentou com um aceno, sem dizer nenhuma palavra. Pude ver nos olhos dele a culpa que carregava. Também percebi que estava com vergonha de mim, olhava para baixo para não me olhar nos olhos.

A tia Valéria e nossa prima Solange ficaram em casa por pelo menos três meses. E pude ouvir quando as duas lhe diziam, antes de partirem, para que não fosse muito dura consigo mesma, nem com ninguém. Que tudo não passava de uma fatalidade e que precisávamos buscar ajuda médica. A senhora as abraçou e disse que sim, que Deus confortaria o seu coração. Mas bastou que elas tivessem longe para que nossa casa virasse de fato um túmulo familiar.

Papai passou a se trancar na oficina da serralheria e a senhora se trancava no quarto de costuras. Eu passei a ficar no meu quarto. De lá para o trabalho, o trabalho para lá. Não havia mais cafés da manhã em família. Não havia mais diálogo a menos que fosse necessário e nenhuma comemoração de aniversário, natal ou ano novo. Uma coisa estava estampada pela casa toda: a culpa.

Sempre que podia a senhora fazia questão de jogar na cara do papai e na minha que a culpa era nossa. Papai devolvia a moeda relembrando-lhe os tapas que a senhora deu no rosto da Fê e eu permanecia em silêncio. Ficar em silêncio me trazia culpa. Sempre me culpava por ter ficado em silêncio naquela noite. Eu deveria ter gritado com ela, ter segurado ela, ter impedido que saísse tão desesperada. Mas minha covardia e silêncio a tinham matado. A senhora não me deixava esquecer disso e meu próprio silêncio me castigava com essa verdade.

A culpa é como um veneno que tomamos e que vai nos matando aos poucos. É como o álcool que parece nos fazer esquecer de todo o resto, mas que causa uma enorme dor, trazendo à memória viva daquilo que nos culpamos. Eu sentia que minha presença em casa não era bem vinda, mas também sabia que sair de casa não era a solução. Sempre imaginava que talvez a senhora ficasse ainda mais doente se eu fosse embora. Talvez quisesse acalentar a mim mesmo como sendo o filho que iria suportar tudo para consolar a perda de sua filha. Eu, que nem filho seu era.

Assim, fui engolindo a culpa e decidi levar a vida adiante, me convenci de que era isso o que a Fê iria querer. Que era a parte que me cabia nessa tragédia que a vida nos apresentava e da qual nós éramos os personagens principais. Aos poucos, nossa relação se tornou uma comédia infame. Não nos aturávamos, mas não nos deixávamos. Viramos cínicos encenando para os espectadores da sociedade. De fora, todos achavam que estava tudo resolvido, tudo perdoado. Dentro de casa, sabíamos a farsa que vivíamos.

A culpa pode se transformar em raiva, autopiedade ou falso altruísmo. Lá em casa, tínhamos os três. A senhora, a autopiedade, sempre se colocando como a vítima que perdeu a filha por culpa do papai e minha. Eu, a raiva, de mim mesmo e de vocês dois por terem causado tamanho estrago ao não se entenderem como adultos e não resolverem as coisas como deveriam ser resolvidas, raiva da Fê por ter saído daquele jeito, raiva da vida, raiva de tudo. O papai, o falso altruísmo, sempre fingindo estar preocupado com a senhora ou comigo, como se estivesse tentando, através dessas preocupações e cuidados, limpar sua própria culpa pela traição e pelo desrespeito à senhora e a nós.

Todos os fins de semana, a senhora passou a visitar o túmulo da Fê. Papai se limitava a comprar as flores. Eu, não fazia nem uma coisa, nem outra. Fico apenas a olhar as fotos e vídeos que tenho com ela e chorar pedindo perdão.

A culpa está por toda casa, a culpa virou uma hóspede silenciosa, venenosa e parceira nas noites de insônia. Afastei-me dos poucos amigos que eu tinha. Alguns disseram que eu estava muito depre, que eu precisava me animar, que ficar triste não a traria de volta e essas coisas todas. A maioria era verdade, mas ninguém sabia realmente como eu me sentia. Nem sei se queriam de fato saber. Fato é que ninguém quer gente depressiva por perto. Pois a culpa gera tristeza e tristeza contamina tanto quanto a felicidade e o amor. Eu já não era boa companhia.

Assim se passou um ano cheio de silêncio e culpa. Depois de um ano, nós três nos tornamos apenas cínicos. Vivendo ainda nossa farsa, fingindo estarmos bem, mantendo as aparências. As visitas e algumas reuniões de família foram permitidas, o assunto poderia até rodear a Fê, mas sempre como uma lembrança distante. Qualquer situação que remetesse à noite de natal, era ignorada ou excluída automaticamente da conversa. Imaginação sobre como seria o futuro brilhante dela era a coisa mais comum e permitida, assim a senhora poderia continuar alimentando a imagem dela viva, se emocionar e compará-la comigo de maneira sempre a me rebaixar. Eu, continuava me fechando em silêncio e culpa. 

Meu último dia de vida.Onde histórias criam vida. Descubra agora