A caixa de biscoitos

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26 de março de 2015

O dia amanheceu nublado e depois de ler e reler a carta, decidi que não iria entregá-la a ninguém. Por estranho que pareça, ela agora me parece irrelevante. Olhei pela janela e observei a casa vizinha, ainda sem nenhuma movimentação. Será que o novo morador ainda não se mudou. De fato, após o caminhão com a mudança ter chegado, apenas os trabalhadores é que estavam no local, descarregaram tudo e se foram.

Hoje entro no horário da tarde, com quase um ano de trabalho, ainda estão me tratando como um estagiário. Perdi a conta de quantas vezes me mudaram de departamento e de horário. Basta surgir um novo produto e pronto, me colocam no novo setor.

A julgar pelo barulho na cozinha, meus pais estavam tomando café. O que significava que eu tinha pelo menos meia hora antes de descer. Fuçando no meu guarda-roupas, encontrei no fundo do armário uma daquelas latas que embalavam os biscoitos amanteigados da Bauducco. Dentro dela um punhado de soldadinhos de chumbo, uma coleção antiga, guardei a carta dentro dela. Lembro-me de quando ganhei a lata de biscoitos como presente de Natal, o meu avô Manuel quem deixou ela embaixo da árvore de natal. Hoje parece uma bobagem, mas para um garoto de oito anos, ganhar uma lata de biscoitos caros aos quais você desejava experimentar, foi uma loucura. Minha mãe teve que colocar a caixa em um lugar escondido para que eu não comesse tudo de uma vez.

O barulho da serra indicava que meu pai estava na oficina que fica no fundo do quintal. Então, minha mãe deveria estar no quartinho de costuras. Desci as escadas e fui até a cozinha. Ela estava terminando de lavar a louça.

— Bom dia, filho.

— Bom dia, mãe.

— Não se esqueça de colocar o lixo pra fora antes de ir para o trabalho.

— Não esqueço.

Essas foram as palavras dela antes de deixar a cozinha e se esconder na sala de costuras. Minha mãe é costureira e faz pequenos consertos de roupas e também costura para algumas marcas de grife para pequenas lojas de franquias. Pelo menos uma vez por mês algum representante vem buscar as peças com ela. Meu pai é um torneiro mecânico aposentado.

Terminei meu café da manhã e fui para o meu quarto estudar, pois me inscrevi para o ENEM, embora não tenha a menor ideia de qual curso pretendo fazer. A Fê com certeza me ajudaria com minhas dúvidas sobre o que cursar. Enquanto pagava meu material, lembrei-me que minha mãe vasculhou minhas coisas atrás de alguma coisa. Na certa ela pensa que ando usando maconha, tudo depois de encontrar alguns papeis que julgou ser para enrolar fumo. Mal sabe ela que uso aquele papel para enviar bilhetinhos no trabalho. Pensando nisso, decidi esconder a lata de biscoitos em um lugar que ela nunca fosse procurar. No jardim.

Desci com a lata em mãos, peguei a colher de jardinagem, cavei um buraco na grama embaixo da estátua da aparição de Nossa Senhora de Fátima, coloquei a lata dentro do buraco e empurrei a estátua de volta ao seu lugar, tomando o devido cuidado para que ela permanecesse exatamente na mesma posição. Minha mãe é devota de Nossa Senhora, então reconstruiu a imagem da Cova da Iria. Assim, em nosso jardim havia próximas da árvore as estátuas de Nossa Senhora e dos três pastorinhos.

Enquanto eu guardava a lata, tive a sensação de estar sendo vigiado. Olhei em volta e não vi ninguém, a estátua de meio metro, parecia olhar para mim. Claro que era só impressão, elas foram feitas para realmente parecem olhar pra gente. A sensação de ser observado permanecia, fui até a calçada e olhei para a casa da frente. Nenhuma movimentação, mas eu tinha quase certeza que alguém estava a me espiar de lá.

Meu celular apitou, era um lembrete de que no dia seguinte eu tinha mais uma sessão de terapia com a Dra. Isabella Jardim. Também havia uma mensagem da Hiroko que dizia o seguinte: "E aí seu tratante, saímos para conversar depois do trabalho hoje?"

Meu último dia de vida.Onde histórias criam vida. Descubra agora