Aniversário da vovó Benedita

4 3 0
                                    

10 de outubro 2016

O tempo passou depressa e não fosse por ser aniversário da vovó Benedita, eu ficaria mais algum tempo sem ver a luz do dia. Semana passada eu basicamente hibernei, minha mãe recorreu ao meu pai para me arrancar do meu quarto já que eu não saía dele há mais de vinte dias. Ele arrombou a porta, arrancou a tranca e me arrastou da cama para o chão. Não sei exatamente como, mas eu estava tomando o remédio errado, em vez de tomar um comprimido de cada, eu estava tomando dois, isso estava me deixando dopado.

Quando meu pai jogou um balde de água gelada em mim, me levantei. Ao olhar-me no espelho, eu mesmo me assustei com minha aparência. Uma barba desgrenhada e suja, um cabelo seboso e embaraçado, os olhos estavam inchados de tanto dormir, um fedor insuportável em minhas roupas e meu quarto. Mamãe entrou e abriu as janelas, os restos de comida, misturados às roupas e meias sujas no chão, os cobertores embolados sobre a cama, o lixo do banheiro transbordando, tudo era uma imundície.

Além de todo o sermão de sempre e da choradeira da minha mãe, ela me lembrou que o aniversário da vovó seria hoje e que jamais eu iria para o sítio naquele estado. Só então, por amar muito minha avó Benedita, desci para tomar banho e trocar de roupa e ir até uma barbearia. Quando cheguei, meus pais estavam me esperando para viajarmos. Minha mãe já havia chamado alguém para limpar a casa. Ela mesma tacou fogo numa porção de roupas minhas que estavam todas mofadas.

Ao chegarmos na casa da vovó, grande foi a alegria dela em me ver. Meu pai a abraçou de maneira breve e seca como sempre, minha mãe a cumprimentou apertando sua mão e apresentou a Ana para ela. Vovó pegou Ana em seus braços e o que vi brilhar em seus olhos era o mais puro amor que eu já havia presenciado. Ana começou a rir, coisa que raramente acontecia quando alguém que não fosse minha mãe e a pegava no colo.

Vovó veio em minha direção e me deu um abraço tão amoroso que me senti no paraíso. Ela é uma pessoa assim, que ilumina a todos com seu amor e eu não conseguia entender os motivos de meu pai, apesar de tanto amor, ser tão frio para com ela, também não conseguia entender como ela não se abalava com isso. Algumas vezes sentia vontade de perguntar a ela, mas ela me olhava e dizia, tudo no seu tempo meu neto, não precisamos falar de espinhos, quando temos pétalas para oferecer. Isso sempre me deixou abismado, ela simplesmente lia nossos pensamentos.

Papai e mamãe ficavam sempre na sala, mal conversavam com a vovó, todos os anos era a mesma coisa, íamos até lá, ficávamos por três horas e voltávamos para casa. Vovó Benedita contou-me que a festa mesmo, acontece depois que vamos embora, pois o povo da cidade se reúne no salão e viram a noite no baile dos aniversariantes da semana. Todo baile de fim de semana tem bolo e comemoração para quem tem acima dos quarenta e cinco anos. A prefeitura é quem paga tudo, só não paga as bebidas alcóolicas. Fiquei impressionado. Contudo nossa três horas ali, eram três horas quase que silenciosas. Após as amenidades sobre o tempo, ou quem nasceu ou morreu na cidade, vovó sempre colocava meu pai a par das coisas, ainda que ele fizesse pouco caso. Como ele mesmo disse uma vez, as pessoas daquele vilarejo, era assim que ele se referia à cidadezinha de apenas três mil habitantes, não interessavam a ele. Vovó sorria e dizia: "Suncê realmente não se importa com suas raíz, isso fez ocê um fraco." Ele ficava enfurecido e nada respondia.

Ela me chamou para dar uma volta pelo sítio, alimentamos os animais, observamos os peixes no lago e esperamos o pôr do sol. Antes mesmo que eu dissesse algo, ela me entregou um objeto. Era uma garrafa com água e disse.

— Essa água foi abençoada pelo nosso padre, menino. A próxima vez suncê encontrar o homem sedento e ele pedir água, o menino dá essa garrafa pra ele.

Peguei a garrafa sem ousar perguntar nada, mas ela lia no meu olhar e disse.

— Não, o menino não tá louco não. Suncê devia sabe. Tem muita coisa nesse mundo e outras que são do outro mundo, aquele pro qual todos nós vai depois de partir daqui. Por algum motivo, o menino vê os qui se foi. Então suncê ajuda eles.

Ela pôs a mão na bolsa dela e tirou um laço de fitas amarelo com bolinhas brancas e uma boneca de pano, esticou a mão e me entregou.

— Aqui, o menino vai ter que ir  entregar isso no cemitério – ela observou minha cara de espanto – Suncê não precisa ter medo menino, isso vai ajudar a menina brava que tá no seu quarto. A casa que o menino mora foi feita no lugar de uma casa antiga. A menina que tá lá, morreu doente e perto do aniversário dela, o pai da menina ia dar pra ela uma boneca muito parecida com essa aqui e ela amava laços de fita. Suncê vai no cemitério e coloca isso lá pra menina, assim ela num vai mais aparece lá não.

— Mas qual cemitério vovó?

— O menino vai saber. Para isso suncê vai carregar a boneca junto de si. Quando o menino tiver perto do cemitério certo, o menino vai descobrir.

Vovó passou a falar sobre coisas da infância dela, falava com emoção e brilho nos olhos. Explicava que durante muito tempo, muitas pessoas do além vinham falar com ela e que ela ficava muito assustada. Até que compreendeu que a gente não precisava ter medo dos mortos, mas muito mais medo dos vivos e que os mortos só fazem mal quando a gente é mau também, porque eles se aproximam de quem se parece muito com eles. Os que sofrem procuram aqueles que podem ajudar, outros buscam atormentar os fracos de espírito para lhes causar tormentos ou buscar vingança.

— Meu neto, suncê tem um dom dado por Deus e se conseguir entender esse dom, poderá ajudar os irmãozinho menor, mas o menino precisa saber que há os trevosos e há os fio da luz. Se suncê se manter firme e em oração, os fio da luz vão tá com suncê e onde tem luz não tem treva. Mas se suncê não aprender isso, o menino pode num aguentar a carga.

Terminou de falar com um ar de preocupada. Estava ficando noite e decidimos entrar. Jantamos em silêncio e nos despedimos. Ela me abraçou forte e cochichou no meu ouvido "Adeus, menino, a gente ainda vai se ver, mas o menino precisa estar preparado. Lembra do que eu disse e num esquece e ajudar os menorzinho."

Voltamos e passei a viagem inteira tentando entender o que foi tudo aquilo. Guardei as coisas que ela me deu na mochila e por algum momento eu quase bebi a garrafa de água que ela me deu. Mas ela escreveu num papel e colou na garrafa, "Não beba".

Foram duas horas de silêncio dentro do carro, pois, Ana dormia profundamente, mamãe e papai pareciam estar em outro lugar, cada um com seu pensamento. Quando estávamos já em nossa cidade, pegamos um trânsito enorme.

— Que droga, o que será que aconteceu? – papais resmungou ao perceber que não conseguiria dar a volta.

— Você é teimoso – disse minha mãe com certa impaciência – Nunca usa o GPS ou algum aplicativo de navegação.

Ela pegou o celular e abriu o wazze.

— Olha aqui – ela mostrou a tela para meu pai — Parece que teve um acidente lá na saída três. Só tem uma rua à direita que nos permite voltar, mas ainda estamos longe.

As pessoas atrás e também lá na frente estavam buzinando sem parar e a Ana acordou chorando. As pessoas são tão imbecis, buzinar não ajuda o trânsito a ir mais rápido e ainda torna todo o ambiente barulhento e irritante. Coloquei os fones de ouvido e escolhi uma playlist que me permitisse abafar aquele barulho infernal. Coloquei meu capuz e recostei na janela. No sentido contrário vinha uma ambulância do SAMU e um veículo do resgate. Quando o resgate passou acelerado, pude ver que alguém estava pendurado na porta traseira, saltou no meio da estrada e veio até nosso carro. Meu corpo todo se enrijeceu, o rosto da pessoa estava ensanguentado e ela gritava desesperada por ajuda. Segurava o toco do braço que jorrava sangue, seu braço estava decepado. Fechei meus olhos e recuei da janela. Ao abri-los novamente, não estava mais lá.

Minutos depois de passarmos pelo local do acidente, pois a via tinha sido liberada, comecei a sentir um formigamento em todo o meu corpo, passávamos por um muro enorme e com muitas árvores plantadas ao longo da calçada, próximo a uma delas vi a menina que aparecia em meu quarto. Ao me ver, ela apontou para o muro, assim que meu pai virou a esquina pude ver uma placa que informava "Cemitério São João da Cruz", ao nos afastarmos, meu corpo parou de formigar. Abri meu celular, entrei no google maps e dei print da localização. Vinte minutos depois, estávamos em casa.

Meu último dia de vida.Onde histórias criam vida. Descubra agora