Volte quando estiver pronto!

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27 de março de 2015

Acordei com a cabeça doendo da bebedeira do dia anterior. Ao menos consegui dormir, tenho certeza que isso não teria acontecido se eu estivesse sóbrio. Passaria a noite toda remoendo o fato de não ter me declarado para a Hiroko logo que percebi que estava apaixonado por ela. A questão é, como ela poderia estar namorando um cara que conhecia há apenas um mês? E pensar que fui eu quem apresentei o Douglas a ela em um dos eventos da empresa. A raiva era tanta que esqueci o protocolo e desci para tomar café da manhã. Dei de cara com minha mãe terminando de passar o café.

— Bom dia filho, dormiu bem? – embora parecesse sincera, sempre que ela usava a palavra filho eu sentia um certo rancor crescer em mim, além disso, aquele tom de voz que finge a alegria de comercial de margarina era tão irritante.

— Bom dia. Dormi sim.

— Você não me parece muito feliz. Aconteceu alguma coisa? Parece que exagerou na bebida, toma esse café forte que cura logo essa ressaca.

Feliz? Feliz? Quando é que eu fui feliz nessa vida? Essa era a resposta que eu queria ter dado a ela, mas minha boca se abriu para responder de maneira cortês e mecânica de sempre.

— Não aconteceu nada demais. Saí pra beber, ontem foi aniversário da Hiroko e comemoramos um pouco. Acho que exagerei.

Eu não estava mentindo, mas no fundo eu queria mesmo era ter contado tudo a ela. Mas como eu poderia, o casamento dos meus pais estava esfarelando, se eles não conseguem manter um relacionamento, que conselhos teriam para dar a um jovem virgem que insiste em acreditar que amar é mais importante que sair por aí numa pegação louca com qualquer um? Só de pensar, me sentia envergonhado.

Meu pai vinha do quarto dele e não escondeu a surpresa em me ver na cozinha.

— Você não foi trabalhar hoje?

— Estou de folga e eu não trabalho no horário da manhã. Mas como você saberia, nunca presta atenção em nada.

— Não fale assim com seu pai Anderson – protestou minha mãe.

— Não, tudo bem querida. Pelo menos ele está falando alguma coisa – respondeu de maneira irônica.

— Não me chame de querida – minha mãe respondeu já fechando a cara – Não pense que lhe dei essa liberdade.

— Que ótimo! De volta às manhãs felizes em família – falei, levantando-me e me retirando da cozinha.

Subi as escadas com uma xícara de café e uma tigela com pães de queijo e biscoitos de polvilho. Olhei pela janela e não havia muita movimentação, alguns vizinhos saindo para o trabalho, algumas crianças indo para a escola, o cara que faz a leitura da companhia elétrica e algumas pessoas levando cães para um passeio. Na casa da frente, ainda não havia nenhuma movimentação. Não sei dizer o porquê, mas eu estava ficando fissurado em saber quem estava morando ali. Eu tinha certeza que já havia alguém lá, nesses dias todos, o lixo foi colocado na cesta, algumas coisas foram entregues e à noite as luzes de fora se acendiam. Tudo isso sem que a pessoa aparecesse, pelo menos não enquanto eu estava observando.

No andar de baixo o barulho da serra começou e eu poderia afirmar sem medo de errar que mamãe já estava na sala de costura dela. A manhã passou voando. Decidi almoçar na rua e de lá ir para a consulta. No caminho fiquei pensando no que tinha ocorrido no dia anterior, não conseguia entender o que a Hiroko tinha visto naquele cara. Ele era um exibido e metido a besta, ainda estava com raiva de mim, dela, dele, acho que estava chateado com tudo.

Ao chegar no consultório a secretária me pediu para entrar, pois a Dra. Isabella estava a minha espera. Quando entrei as coisas estavam diferentes e fiquei realmente surpreso a ponto de a doutora observar minha reação e perguntar:

— E então, o que achou da mudança? Vejo que consegui lhe impressionar.

As paredes traziam um tom azul anil com alguns trechos esbranquiçados que lembravam nuvens no céu. No lugar das antigas revistas médicas, um livro sobre obras de artes, algumas revistas de fofocas e algumas HQ's, algumas coisas lembravam uma varanda.

— Uau! Ficou muito bom.

— Fico feliz que tenha gostado.

— Mas, por que tudo isso?

— Bem, eu pensei muito no que você falou e decidi fazer uma pesquisa entre os clientes. Baseado nas respostas decidi mudar o ambiente e posso dizer que a aprovação está em cem por cento. Mais uma vez obrigado por expressar sua opinião sincera – ela falou com um sorriso tão natural que não pude deixar de olhar – Sente-se, fique à vontade.

Sentei-me e ela começou a me fazer perguntas. As mesmas de sempre. Como eu estava me sentindo? Se eu gostaria de abordar um assunto específico? Sobre como eu via meu futuro? Estas bobagens de psicólogos.

Eu estava me sentindo um bosta por causa do dia anterior, mas não ia dizer isso a ela. Ela vomitou meia dúzia de coisas sobre a importância de eu falar.

— Eu não poderei lhe ajudar se não me disser nada. O que lhe incomoda, senhor Anderson? – ela perguntou após me observar por um tempo.

Já irritado depois de meia hora em pleno silêncio de minha parte decidi usar do meu sarcasmo.

— A senhora inventa as perguntas na hora ou elas já vêm escritas, Dra. Isabella?

Ela me olhou como quem não tivesse entendido. Não estava usando branco. Usava uma blusa Drapeada mostarda de manga comprida e um colar com pedras verdes combinando com os brincos, provavelmente um conjunto. Uma calça de sarja azul marinho e sapatos de salto baixo.

— Desculpe-me. Como assim? Não sei se entendi.

Eu dei risada e ela um pouco constrangida anotou alguma coisa.

— Do que o senhor está rindo?

— Desculpe-me, não pude evitar em notar que veio com roupas mais escuras. Ficou bonita.

Ela corou e agradeceu gentilmente. Depois impôs um tom mais sério.

— Sabe, senhor Alexanderson, não estou aqui para ser desrespeitada com seus sarcasmos. Se não está a fim de ser ajudado, diga isso aos seus pais e não venha mais às sessões. Eu devolvo o dinheiro, não estou aqui para esses joguinhos. Compreendo que tenha suas dificuldades e posso ficar em silêncio até o dia que se sentir pronto, mas não tolero zombaria com meu trabalho. Fui suficientemente clara?

Dessa vez, quem se sentiu envergonhado fui eu.

— Sim, me desculpe, não irá acontecer mais.

— Fico feliz em saber – ela respondeu em tom severo – A julgar pela maneira que me trata, creio que tenha problemas que envolvem hierarquia. Alguma coisa relacionada aos seus pais?

Eu mantive o silêncio. Aquela observação me fez lembrar de muitas coisas e mexeu numa ferida aberta há muito tempo. Quando olhei para ela, já pensando em responder, ouvi num tom que misturava sarcasmo e tristeza.

— A sessão de hoje acabou senhor Anderson. Volte quando estiver pronto.

Ela se levantou estendendo a mão e dessa vez eu não estava satisfeito em ter desperdiçado meu tempo. Não estendi a mão de volta e ela apenas sorriu como quem sabia que tinha me atingido. Abaixou a mão que deixei no vácuo. Uma angústia cresceu dentro de mim. Ela caminhou até a porta e abriu, estendeu o braço indicando a saída. Isso me deixou muito irritado, parecia-me ofensivo, embora, talvez ela estivesse apenas sendo educada, era impossível saber. A fala dela martelou minha mente até chegar em casa. "Problemas com seus pais?", "Volte quando estiver pronto."

Talvez eu não volte nunca mais. Ela conseguiu me irritar de verdade.

Meu último dia de vida.Onde histórias criam vida. Descubra agora