AGNES
Acordei com um sobressalto, os gritos de vozes masculinas cortando o silêncio que havia me envolvido durante a soneca da tarde. O apartamento de Álvaro costumava ser um reduto de quietude, o único som sendo o leve zumbido do ar-condicionado ou o barulho abafado do trânsito do Rio de Janeiro, lá embaixo. Mas agora, o clima estava diferente. Havia tensão no ar, quase palpável, e eu senti meu coração acelerar antes mesmo de entender o que estava acontecendo.
Levantei-me da cama em um movimento rápido, ainda tonta pelo sono interrompido, e fiquei de pé por um momento, tentando me orientar.
"O que está acontecendo?", me perguntei, enquanto as vozes se tornavam mais audíveis.
Não era Álvaro que estava gritando; isso eu sabia. Sua voz era grave, controlada. As vozes vinham da sala.
Ajeitei meu vestido e movi-me com cautela, com passos leves sobre o piso frio. O medo e a curiosidade lutavam dentro de mim, mas a necessidade de entender o que estava acontecendo era maior. Cheguei à porta do quarto, espiando pela fresta. Da posição onde eu estava, conseguia ver apenas parcialmente a sala de estar, mas as vozes estavam claras.
— Isso não é uma questão de escolha pessoal, Amaral! — um dos homens praticamente rugiu, sua voz carregada de indignação. — São apenas crianças pobres que vem de família numerosas. Você acha mesmo que tirar uma criança de uma mãe de 7 filhos fará diferença? Só se for na hora de receber alguma bolsa de parideira que não sabe fechar as porras das pernas.
"Amaral". O sobrenome de Álvaro ecoou pela minha mente. Aquela discussão parecia grave.
Com passos cautelosos, aproximei-me mais, e então vi os três. Álvaro estava de pé, a gravata um pouco afrouxada, mas ainda mantendo uma postura rígida, como se estivesse tentando controlar a situação. Na frente dele, estavam dois homens que eu reconheci quase imediatamente.
Dois políticos. Dois nomes poderosos. Um deles, um conhecido representante da esquerda, e o outro, um conservador ferrenho de direita. O choque percorreu meu corpo ao vê-los ali, juntos, no mesmo cômodo, conversando — ou melhor, gritando — como se fossem aliados. Aquilo não fazia sentido. Eles eram rivais públicos, opositores em debates acalorados, em campanhas que separavam o país, mas naquele cômodo parecia que estavam perfeitamente alinhados em algo que me fez enjoar só de ouvir.
— Vocês não podem esperar que eu fique calado sobre isso... São crianças, porra! — A voz de Álvaro soou firme, mas com uma nota de tensão. Ele parecia diferente. Estava tenso, como se as paredes estivessem se fechando sobre ele. — Isso é inadmissível, até para mim.
O homem da esquerda, com seu terno impecável e o rosto distorcido em um sorriso cínico, deu um passo à frente, aproximando-se de Álvaro.
— Cala essa boca, Amaral. Você e sua família estão tão dentro disso quanto todos nós. Se alguém cair, vocês caem também. — A voz dele era suave, mas com uma ameaça subjacente que fez meu estômago revirar.
Álvaro respirou fundo, seus ombros tensos.
— Eu posso aceitar muitas coisas — começou ele, sua voz baixa, mas firme. — Mas tráfico de crianças? Sequestrar crianças? Isso eu não vou compactuar.
Um frio percorreu minha espinha, e senti meu corpo gelar. Tráfico de crianças? As palavras giraram na minha mente, enquanto flashes de reportagens, de mães desesperadas nas redes sociais falando sobre tentativas de sequestros, começaram a surgir. As histórias das crianças desaparecidas no Rio de Janeiro. Eu já tinha ouvido os relatos, mas nunca imaginei que o buraco fosse tão fundo.
O outro homem, o da direita, balançou a cabeça, sua expressão de desdém fazendo meu sangue ferver.
— Não é uma questão de escolha, Álvaro. Se a merda atingir o ventilador, você e a sua família vão pagar o preço. E nós não seremos os únicos a cair. — A ameaça era clara, e o silêncio que se seguiu foi sufocante.
Os dois homens trocaram olhares, como se não houvesse mais nada a ser dito. Eles sabiam que tinham poder sobre Álvaro, que ele estava em uma situação complicada, e com um último olhar, caminharam em direção à porta. O som da porta se fechando ecoou pelo apartamento, deixando um vazio que parecia engolir tudo.
Fiquei ali, escondida na sombra do corredor, o coração disparado, tentando processar o que acabara de ouvir. Tráfico de crianças. Aquilo era pior do que eu poderia imaginar. E Álvaro estava no meio disso, mesmo que estivesse tentando lutar contra. Ele não era inocente, mas, de alguma forma, aquela era uma linha que ele não estava disposto a cruzar.
Quando os passos se afastaram e o silêncio dominou o ambiente, voltei minha atenção para Álvaro. Ele estava parado na sala, a expressão dura, e em um movimento repentino, afrouxou a gravata com uma frustração evidente, jogando-se no sofá. Por um momento, ele apenas ficou ali, respirando de maneira irregular, como se tentasse se recompor.
Com cuidado, dei mais um passo à frente, e foi nesse momento que ele me viu.
— Quanto tempo você tá aí? — Ele me olhou, a voz carregada de exaustão, mas também com uma preocupação genuína.
— Tempo suficiente para saber que você está em apuros — respondi, com a voz firme, mas controlada.
Ele riu, mas era um riso seco, sem humor. Não havia nenhuma diversão naquilo. Apenas desespero.
Aproximei-me lentamente, sentindo uma mistura de compaixão e cautela. Algo nele parecia estar desmoronando, e, pela primeira vez, vi Álvaro não como o homem perigoso que controlava todas as situações, mas como alguém que estava à beira de um abismo.
Sentei-me ao seu lado, o sofá afundando levemente com o peso de nós dois. O cheiro da colônia amadeirada dele ainda pairava no ar, mas havia algo mais ali: um cansaço que não era apenas físico.
— Confesso que achei que você fosse um homem 100% mal. — Minha voz soou quase brincalhona, mas o significado era claro.
Eu estava confusa. Álvaro era um homem envolto em escuridão, mas ele estava se opondo a algo monstruoso.
Ele me olhou, os olhos carregados de uma intensidade que eu não sabia como decifrar.
— Eu te ajudei a sair daquele leilão que você foi por engano... — ele começou, sua voz arrastada, como se estivesse refletindo sobre as palavras enquanto as pronunciava.
Dei de ombros, tentando não parecer afetada pela proximidade dele.
— Ah, achei que você fez isso porque queria me levar pra cama.
Ele sorriu, um sorriso lento, mas carregado de algo mais. Algo que fez meu coração pular de leve.
— Mas eu quero mesmo te foder... — A frase saiu sem rodeios, crua e direta, cortando o ar entre nós.
Eu engasguei, surpresa, sentindo o rosto esquentar. O riso dele foi baixo, quase contido, como se a minha reação fosse exatamente o que ele esperava.
O ambiente ficou carregado, e por um momento, o mundo lá fora — com seus horrores e conspirações — desapareceu. Havia apenas nós dois, sentados lado a lado.
Álvaro se inclinou levemente, os olhos escuros presos aos meus, e o calor entre nós se intensificou. Senti minha respiração acelerar, e por um momento, não sabia mais distinguir o que era medo, o que era desejo, ou o que era simplesmente a adrenalina de estar tão perto de algo perigoso.