Capítulo 23

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Joice passou toda a noite pensando em sua família, em seu amor por Rodrigo e em sua melhor amiga, Vivi. Sentia uma saudade tão intensa que tinha quase uma necessidade de gritar. Saiu do salão sem que as pessoas percebessem, aproveitando que na dança todos queriam estar com a Princesa Kilayra. Olhavam pra ela como se fosse uma aberração, isso foi bastante estranho. Pareciam temê-la. Saber que todos a conheciam e sabiam sobre a tal profecia era muito desconcertante. A festa não estava tão divertida quanto imaginou que seria, mas haveria de convir que era a primeira diversão que teve desde que chegou ao novo mundo. Anotou mentalmente que precisava perguntar a Erycles um pouco mais sobre essa profecia que rondava sua família. Falaram sobre isso, mas de forma tão vaga que não imaginava ser uma história de domínio público.

Era difícil permanecer sorrindo ao enfrentar os olhares atrevidos dos mais curiosos. Sentiu vontade de sair e andar pela noite, mas teve medo de perder-se, era muito escuro fora do palácio. Pensou em como gostaria de voltar pra casa. Mas o que teria lá esperando por sua volta? Seu pai tinha sumido, sua mãe assassinada e seu namorado provavelmente achava que ela estava morta. Aquele mundo não lhe pertencia e ela também não se encaixava muito nele. Contudo, era o que tinha pra hoje! Sentia saudades de seu pai, encontrá-lo era fundamental. E depois, um meio de voltarem pra casa, juntos. Definitivamente não viveria no Daran até o final de seus dias, já decidira isso.

Resolveu levantar e ir até o jardim do palácio, não achou que fosse possível se perder. Ao caminhar pela parte externa, começou a ouvir vozes vindas do lado oposto. Pelo menos duas pessoas, concluiu. Usou o feitiço de vento e de luz combinados para seu que sua presença não fosse notada. Comandava a luz para atravessar seu corpo ignorando sua presença, e assim, permaneceria invisível aos olhos despreocupados e pouco observadores. Aproximou-se. Erycles conversava com uma bonita mulher, que claramente também possuía aptidões mágicas. Incapaz de ouvir toda a conversa, eles falavam sobre alguém ferido. E que esse não deveria morrer. Era pedido ao bruxo que o auxiliasse, em resposta, disse-lhe que veria o que fazer a respeito. Enquanto se aproximava mais, percebeu que a mulher não estava materialmente ali, mas era uma projeção, um holograma. Talvez a magia sentida viesse apenas de Erycles. Um passo em falso e quebrou um galho, chamando atenção para sua direção. Saltou dali para o mais longe que conseguiu pensar. Percebeu-se flutuando, avaliou a necessidade de treinar mais essas magias realizadas abruptamente. Percebeu-se caindo quando controlou o ar e levitou. Foi quando notou estar bem abaixo da janela do quarto da princesa, podia ouvi-la despedindo-se de sua serva. Pensou em descer dali quando olhou para baixo e notou uma pessoa a olhar para cima. Agradeceu por ter esquecido de retirar o feitiço com a luz, pois de outra forma, seria pega no flagra, mas àquela distância e da forma translúcida em que se achava, era fácil camuflar-se com a parede do castelo. Percebeu que Kilayra olhou pela janela. Não resistiu à vontade de espionar. Aproximou-se a ponto de ver dentro do quarto. Ouviu os assovios repetidos por três vezes. Percebeu a movimentação vinda do lado de dentro do quarto. Teve certeza de que não era um caso isolado e que a jovem morena sabia exatamente do que se tratava aquele chamado.

Minutos antes dos assovios, e alheia ao que acontecia do lado de fora do palácio, Kilayra estava cansada em sua cama e remexendo os dedos dos pés para relaxá-los. Ouviu a sequência de sopros e sons, a senha. Quando vinham assovios repetidos naquela ordem era sinal de que algo de errado aconteceu. Trancou a porta de seu quarto e olhou pela janela. A princesa moveu um castiçal na beira da lareira que estava apagada e uma passagem secreta se abriu. Entrou pela fresta, seguindo pelos corredores com a pouca luz que levara consigo. Não podia evitar as lembranças da primeira noite que traçara aquele caminho em direção à sede da Ordem do Dragão. Na ocasião de sua investidura como aliada, foi obrigada a fazer uma escolha. Uma terrível escolha. Apertou contra o peito o papel com o desenho da criança, que ela havia memorizado cada traço, o rabisco velho e já surrado pelo manuseio. Guardou novamente junto ao bolso de dentro do vestido que usava para sair do palácio sem ser reconhecida.

As cenas voltavam à sua mente como um turbilhão, e ela não conseguia evitar que continuassem a chegar. Virou o corredor seguinte. Em poucos momentos estava fora dos muros do palácio. Encontrou-se com o mensageiro. Conversaram rapidamente. O problema era com Ryan. No instante seguinte, entrava na floresta atrás do jovem portador do recado. A lembrança daquele terrível dia estaria eternamente cravada em sua alma. Recordações intensas e perturbadoras. Numa época em que ela precisava provar a seu novo grupo. Demonstrar que não entraria para o grupo com a finalidade de espionar para o Rei. Avisar aos amigos sobre a emboscada era crucial. Sua mente prestava pouca atenção ao caminho que seus pés traçavam no presente. Ela seguia o Defensor sob aquela iluminação das luas, mas sua memória era traiçoeira. Muito embora a formação das cinco luas naquela noite ajudava a reavivar a memória. Pareciam estar compatíveis com a que viu naquela ocasião. Conduzia a consciência para tempos dos quais não sentia saudade. As cenas do caminho de outrora e o atual iam e vinham numa dança entre passado e presente, rodopiando embriagadas. Uma decisão, certa ou errada, apenas uma decisão. Avançava enquanto galhos estalavam logo abaixo dos pés. Encontraria aquela criança mais uma vez. Jurara procurar pelo resto de seus dias. De volta ao presente, seus olhos marejados embaçavam o caminho à sua frente. Continuava. Passos incertos, consciente de mais uma desgraça que sobreviria aos amigos da Ordem.

Joice permanecia imperceptível aos olhos e suspensa na altura da janela da princesa, quando a viu passar por entre as pedras do muro do palácio. "Ora, ora! A princesa também tinha os seus segredos!". Resolveu segui-la. Comandou o vento para que trouxesse a voz dos dois para mais perto. Lamentou não ter pensado nisso durante a conversa entre Erycles e o holograma da bruxa de beleza estranha no jardim. Aproximar-se foi um erro que não pretendia cometer novamente se precisasse espionar alguém. Ouviu que alguém havia se machucado. Será que eles falavam da mesma pessoa que Erycles? Resolveu segui-los, flutuando logo atrás, sem que os perdesse de vista. Passaram por uma parte do centro da cidade que se estabelecia ainda dentro dos muros intermediários. Era uma parte nobre da aldeia que rodeava o palácio. Atravessaram mais um muro através de uma saída de esgoto. Foram por um caminho estreito em meio à floresta, chegando até o pequeno casebre num campo coberto de plantação. Entraram na pequena casa, que pelo lado de fora não aparentava ter dois andares. Notou uma movimentação estranha naquele local, como se alguns homens estivessem de guarda do lado de fora. Um entra e sai incomum para aquela hora. Joice aproveitou a porta aberta e antes de fechar, esgueirou-se para dentro do ambiente.

— O que aconteceu? — perguntou Kilayra logo que entrou na desarrumada e pequena sala, repleta de pessoas familiares que se juntaram à Ordem do Dragão ao longo dos anos.

— Ryan está ferido. Aconteceu agora há pouco — disse o homem que estava sentado ao lado da porta.

— Como? — perguntou Kilayra surpresa.

— Buscávamos as armas que vossa majestade nos indicou que passariam pela estrada do norte.

— Já disse para esquecer meu título quando entro aqui. Chame-me apenas por meu nome.

— Está bem, princesa.

— Acha que ele corre perigo? — desistiu de insistir.

— Não sabemos ainda...

— Quero vê-lo.

— Não sei se deveria...

— Do que está falando? Estou com vocês. Esqueça quem sou e leve-me até Ryan, agora!

— Está bem.

Era o mesmo nome que quase ouvira Erycles falar, Ryan. Agora tinha certeza, precisava descobrir o que estavam fazendo ali no meio da noite. Ela sabia que se isso era importante para o velho bruxo, devia ser importante também para que Joice encontrasse seu pai.

Subiram por uma escada de madeira improvisada que dava para um sótão, arrumado de tal forma que o tornava até aconchegante, passando uma ideia de quarto. Pouco iluminado, mas ainda assim um quarto. Joice estava bem atrás da princesa, camuflada e ainda invisível. Tentava processar o que acabara de ouvir. A princesa ajudava a Ordem do Dragão contra o próprio pai! E depois eles diziam que seria ela quem trairia a sua família!

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Pessoal, estão gostando?

Espero os votos e os comentários de vocês!
Aquele Abraço,

W.F.Endlich


A Senhora do Caos - A Viajante e o DragãoOnde histórias criam vida. Descubra agora